…respostas, críticas, crónicas, verdades infundadas, teorias, encontros, paródias, conspirações, chalaças, ramboiadas, lágrimas, venenos, gentes, vícios, valores, palavras, perguntas, solidões, comunhões, fobias, frenias, neopatologias, actualidades, mundialidades, portugalidades. Ou só insignificâncias…
domingo, outubro 30, 2005
assobio
Eu gosto de assobiar, pena que mais gente não goste. Assim cada um na rua assobiava para si e ninguém se sentia incomodamente atingido com a felicidade dos outros. G.F.
pecados horríveis
«Porque é que ainda não posso provar hóstias?» perguntou-me aquele puto de 6 anos. Eu respondi-lhe que talvez fosse preciso contar os seus pecados e conta-los a Deus. Ele perguntou-me o que eram pecados e eu respondi-lhe que eram coisas más que tínhamos feito ou fazemos na vida. Ele respondeu-me preocupado: «Eu faço uma coisa horrível, quando lavo os dentes gosto de coçar o rabo ao mesmo tempo.» G.F.
segundo
Eu não conheço nem conheci bem o Padre Farin mas ele ajudou-me a alicerçar a visão romântica que tenho do escutismo ou do que deviam ser os Homens. Tudo por culpa de uma noite na Madeira, num miradouro com vista para o anfiteatro do Funchal em que falava connosco sobre o Brasil e da sua experiência como missionário lá. Eu tinha 14 anos. Entre estórias e uma mala de onde ele conseguia tirar sempre novas surpresas, apareceu uma guitarra. Foi quando se cantou entre tantas outras, “Romaria”. O trem da minha vida ainda hoje oiço iluminado como o cantámos em tom de oração melódica naquela noite.Desde então que Elis Regina tem um lugar especial na minha lista pessoal de afectos. Fiquei triste pouco depois quando descobri que já tinha morrido. Pensei que teria de ficar apenas com aqueles lugares especiais a que me levam algumas das canções que cantou e tive pena que não pudesse ouvir coisas novas e voltar a maravilhar-me. Alguns anos depois, nascida de si e renascida em si, Maria Rita e um “Segundo” que nos seus últimos segundos, descobertos pelo meu amigo Vegeta, me voltou a emocionar. G.F.
A paixão é como deus que quando quer me toma todo o pensamento
A paixão é como deus que quando quer me toma todo o pensamento
Dirige os meus movimentos, meu passo é seu
Meu pulso é desse todo poderoso sentimento
Dirige os meus movimentos, meu passo é seu
Meu pulso é desse todo poderoso sentimento
fundo da lata
Ando a ganhar coragem para escrever todas as memórias marcantes de Padova. Como ainda estão tão quentes, a intensidade com que as lembro não me deixa querer avançar. No dia em que o masoquismo vencer então talvez fale melhor dele, melhor deles, de nós, que ali vivemos e fomos familia. Escreva mais sobre esse tempo em fomos felizes e livres. Agora deixo aqui o blogue dele que, além de ter sido guitarrista da mesma banda do que eu e me ter influenciado na forma como pronuncio a palavra" merda", me fez crescer, pensar e me faz rir com um humor inteligente que muito poucos têm. E agora, algo completamente diferente no fundo da lata. G.F.
quarta-feira, outubro 26, 2005
vontades
Já o vi quatro vezes. Cada vez que passamos na Estação de Benfica aquele velho louco vê a placa e grita S.L.B. E nós no comboio sorrimos porque nós também pensámos em gritar mas nunca tivemos coragem para o fazer. G.F.
anúncio.
Se quando me deito é com ela com quem sonho acordado e se quando acordo é o vazio da sua inexistência que me faz querer dormir mais, então continuo amando. Ou também sei que amo, porque Neruda se tornou agora ainda mais infinito. Ou porque ela é um resumo de toda a Poesia. Ou porque às vezes tudo é simples. Ou porque eu e ela estivemos tão perto que ainda sinto mais frio perto dos outros. Ou só porque ela é a Mulher mais Bela do mundo. Ou porque não preciso de dar a ler o que escrevo pois já não me sinto tão só. Minto, preciso de vos mostrar o que escrevo e também dizer a toda a gente que a encontrei. Pois mais que a obrigação de encontrar o nosso amor há que cantá-lo. Escreve-lo em letras garrafais, ecoa-lo pelos muros, bites, todas as colunas de som da cidade. Contar a todos que a encontrámos, dizer quem ele é, gritar soletrando o seu nome que nos vem à memória em cada minuto. Consumar em decibéis de loucura a nossa fé passional.
Se a mais lamechas canção de amor ganha um significado profundo então estou apaixonado. Se quando me deito é com ela que sonho acordado e se quando ela se deita é comigo com quem sonha acordada então somos Namorados. Se quando adormecemos sorrimos, então é porque estamos e somos Felizes.
E devemos ter sempre alguém a quem anunciá-lo. G.F.
ternura
Hay que endurecerce pero sin perder la ternura jamás! Che Guevara
Aparte a discussão política, o comandante revolucionário argentino, poeta no viver, sabia o que era a ternura. Via-a nos olhos do povo, das crianças, dos velhos, dos pobres, dos injustiçados. Esta é a ternura que falta aos homens. Não nos faz nenhuma falta o lado gay, a metrossexualidade, a sensibilidade feminina simetricamente masculinizada. A ternura que falta aos homens não são os lobies que vão conseguir vender. Somos nós que não a podemos perder ao crescermos.G.F.
amor à vida
«Perto do rio costumam transitar, nas horas solitárias, todos aqueles que pelas vagas cabeças trespassam ideias de suicídio. Quando chove, há os que levam o chapéu-de-chuva. Esses ainda têm amor à vida.» Carlos Trillo
terça-feira, outubro 25, 2005
dadaísmo equestre
(O texto que se segue é apenas o resultado de uma sugestão da Ana, "escreve sobre cavalos". Estão ali no Word outras coisas bonitas para serem publicadas mas ainda não tinha chegado a hora de o serem. Quis fazer algo realmente inútil e eis aqui o resultado. É um conto absurdo. Ou não, se gostares mesmo muito de cavalos.)
Aristides
«Tenho mesmo cara de cavalo» disse, olhando-se no espelho. De facto o nariz era feio e grande. Grande não. Enorme. Gigantesco nos dias de fraca auto-estima. O cabelo não ajudava ao disfarce do rosto hípico. “Estilo eighties electroclash”, gostava de definir. “Uma crina” sentenciámos nós. Aristides era seu nome.
Antes de lavar os portentosos dentes incisivos teve tempo para um pequeno-almoço rápido. Uma sopa de cavalo cansado. Bem disposto saiu de casa e entrou sem pressas no seu Citroen 2 cavalos, castanho velho. Ligou o Rádio e acelerou mais. “Agooora, agooora, és um cavalo de corriida!”- começou a cantar cada vez mal alto e possuído por uma energia. Ele não cantava propriamente: emitia gritos horrendos, esganiçando o timbre. Nós diziamos eufemisticamente que relinchava.
Estacionara o carro em dupla fila quando viu uma ruiva alta, calças de montar, generosas formas, descendo a rua num trote sensual. “Que cavalão!” pensou, imaginando-a em fantasias texanas, cavalgando-o entre lençóis e pradarias. Com a mente viajando dirigiu-se para o seu modesto trabalho no Campo Grande, onde limpava as cavalariças. O tempo todo que tinha vivido naquele meio equestre tinha-o tornado mais semelhante aos seres que ajudava a cuidar.
Tinha-lhe oferecido o emprego um General da sua terra. Ainda do tempo em que ele pertencera ao Regimento de Cavalaria número 2. Não se ganhava bem, mas também não era uma miséria e tinha sido um favor de tão cavalheiro General. «O General é um homem valente e um homem valente e um cavalo bom são reconhecidos quando chegam», dizia-lhe seu avô, pintor, de quem tinha herdado aquele precioso cavalete que todos desconheciam. Nesse cavalete pintava o seu mundo, as corridas, hipogrifos majestosos, tudo sempre em perspectiva cavaleira. Nas noites de insónia, encontrava a liberdade que perdera. Retornava a esse tempo em que tanto gostava de andar às cavalitas do avô. Mas seu patrão não o deixava sonhar alto, não o deixava voltar inebriado à sua ilha de sonho, a ilha de Basilia. Era um homem mau e arrogante, um cavaleirão. Quantas vezes pouco faltou para que saísse da boca de Aristides um grito de revolta a seu patrão, um “ e se fosses fazer broches a cavalos hein?” A única vez que tiveram relações cordiais foi quando o fulano ofereceu uma almoçarada a todos os empregados. Ainda se lembrava da ementa desse dia histórico: Arroz de tomate com cavalas.
A Aristides a vida não dera para mais. Na escola esteve perto de ser considerado cretino. Era um rapaz de hipocampo e hipotálamo diminutos. “Uma cavalgação”, avaliava a seus pais, resignada, a sua professora da primária. Na sua adolescência nutriu uma paixão por motas e passava horas equídeas a fazer-se às meninas da sua aldeia, perto da Golegã, sacando cavalinhos vertiginosos. Assim vagueava, assim queimava tempos, assim ia “vendo cavalinhos – fuscos” como lhe sorria o avô, obeso como um hipopótamo.
Havia um colega de trabalho com quem gostava de passar tempo, o Jolly, a quem ele carinhosamente chamava Jumper. Na hora do almoço jogavam Xadrez. Embora não fossem grandes mestres, ambos se deliciavam em apostar no dia em que fosse o cavalo a comer a rainha. Jolly por coincidência tinha feito parte dos grupos de pressão contra os talhos de carne de cavalo de Lisboa, sendo fundador do movimento “Morte ao Hipófago”.
Aristides, enquanto jogava Xadrez, pensava na sua família. A mulher tinha-o trocado por um homem ainda mais feio que ele. “Andara de cavalo para burro”. O filho, já com seu futuro hipotecado no dia em que nasceu, meteu-se na droga. Chutava cavalo para os lados do Intendente. Era sonho de Aristides que seu rebento entrasse numa arena montado num como o “Russo” do fado. Ou mesmo que se tornasse num conceituado Hipólogo. Mas não. Seu filho nunca fora um hipomaníaco como seu pai e nem um manco poney lhe servira de montada.
O nosso homem acabava os seus deveres e regressava normalmente de comboio, o “cavalo de ferro” como gostava de vislumbrar em “letras à john wayne”. Regressava a casa assim porque a sua carroça era sempre rebocada. Jantava sempre um ovo a cavalo à pressa e duas horas depois estava no Casino a jogar nos cavalos de corrida. Perdia assim o resto da sua miséria. Quando ganhava algum embebedava-se com doses verdadeiramente para cavalo num bar de esquina, o “Rocinante”. Passava depois à porta das discotecas para procurar cavalgadas esporádicas mas já ninguém o deixava entrar. Então, cá fora, sonhava em tornar-se num Cavalo de Tróia e vencer dentro da pista de dança os surpreendidos inimigos.
Antes de chegar a casa, passava secretamente pela cavalariça onde trabalhava e tentava adivinhar o futuro através do relinchar dos cavalos. A verdade escondida é que Aristides se tinha tornado um praticante da oculta hipomancia antiga celta.
Estava a ficar louco. E louco estava naquela noite de 2002, que segundo o Zodíaco chinês era também o seu ano de sorte. Ao cair numa viela perdido de embriaguês vislumbrou uma cigana que trazia um potro. Estendo-lhe a rédea, sorriu e disse “ofereço-te, é um puro sangue lusitano”. Aristides, bom conhecedor, pediu para olhar os dentes e comprovar. Assim que o animal lhe abriu a boca levou um tremendo coice na testa. No dia seguinte antes de suspirar pela última vez esvaído em sangue, Aristides teve tempo de nos dizer: «A cavalo dado não se olha o dente..» G.F.
quinta-feira, setembro 15, 2005
teste judaicoreblicopinto
A vida é um sonho para os sábios, um jogo para os tolos, uma comédia para os ricos, uma tragédia para os pobres.» Sholom Aleichem
terça-feira, setembro 13, 2005
lisboa irónica
«...cidade esta onde o tribunal é da Boa-Hora e o cemitério dos Prazeres...» José Cardoso Pires às páginas tantas da Balada da Praia dos Cães
teste judaicorebelicopinto
Depois de ler devidamente a questão, pense durante 5 a 7 segundos sobre esta e responda a uma das quatro opções apresentadas.
A vida para ti, o que é?
a- uma comédia
b- um jogo.
c- um sonho.
d- uma tragédia.
A resposta será dada amanhã. G.F.
segunda-feira, setembro 12, 2005
gato
Relembrando as discussões sobre religião, ciência e filosofia que a trindade jórdica teve, embriagada ou menos ébria em Padova, fica uma frase dita pelo Pai Jordas e cujo autor não ouvi. Ou melhor, não me lembro. (Mas dizer que fomos ontem surdos sobrepõe-se ao admitir que hoje nos esquecemos). (e para introduzir um pensamento bonito acabei de deixar aqui outro que mais tarde lerei e perceberei se tem alguma lógica psicossociológica).G.F. Bem a frase é:
«Um filósofo é um gajo dentro de um quarto escuro que procura um gato que não existe. Um teólogo é um gajo dentro desse quarto escuro e que encontra o gato que não existe.»
«Um filósofo é um gajo dentro de um quarto escuro que procura um gato que não existe. Um teólogo é um gajo dentro desse quarto escuro e que encontra o gato que não existe.»
o país que não temos
“È o país que temos.” Assim se concluem muitas discussões sobre este pedaço de terra em que vivemos. Esse resumo triste é feito com um encolher de ombros, de esperança perdida. Criticamos Portugal e criticamos os portugueses como se todos tivéssemos de pagar com a longa demora dos juros feitos de incêndios, seca e aumento da gasolina, uma Glória que em tempo tivemos como nação. Baixamos os ombros como se já soubéssemos o final do filme e apenas permanecêssemos na sala porque pagámos o bilhete. E um bilhete caro. Só que não sabemos que os outros países também têm um país ao qual respondem, “é o que temos”. A diferença é que no estrangeiro não se encolhem os ombros, arregaçam-se as mangas. Trabalha-se porque problemas existem em todo o lado e até mais graves que aqui. O medo de descobrir a solução ou o medo de se ter de trabalhar para descobrir esse desconhecido resolver é que nos vai empurrando contra o canto.
E quando se está fora desse canto por alguns meses percebe-se melhor porque somos bons, às vezes surpreendentemente melhores, mas também medíocres, às vezes assustadoramente piores. Viver numa comunidade de jovens de quase todos os países da união europeia e ter a oportunidade de conhecer e encontrar amigos americanos, australianos, argentinos, americanos, brasileiros, israelitas e iranianos ajudou-me a perceber duas coisas: que existem diferentes personalidades geográficas mas que também existem afastamentos e comunhões universais, humanas. Hoje escrevo sobre a primeira e sobre o povo que temos e que descobri fora da sua pátria territorial.
Naquele tubo de ensaio inter e intra cultural que é o “Erasmus”, a nossa cultura resultava quase sempre dominante. Pelo menos, posso afirmar (com todas as excepções que uma generalização sempre trás e sabendo que só generalizando se pode ser verdadeiramente polémico no que toca a diferenças de grupos) que: na organização de actividades, na criatividade com que se preparavam, na literacia, no grau de conhecimento sobre os outros e das suas línguas maternas, no sentido de humor sarcástico, na capacidade de organizar o muito estudo em poucas horas, no tão típico super poder do desenrascar em situações inesperadas, no cantar animadamente não só coisas suas mas também dos outros países, no unir das várias nacionalidades, os portugueses eram quem se distinguia. Não o digo com orgulho, escrevo-o até com auto-estima nacional mais diminuta. Porque percebi que temos qualidades que os outros não têm mas não nos fazemos usar delas para termos um país um pouco melhor a nível sócio— económico e cultural.
No estrangeiro percebi o carácter expansivo da cultura portuguesa, da missão inconsciente que temos em estreitar laços entre os continentes e entre os homens por estarmos para aqui remetidos. Somos filhos de uma nação que se expandiu com objectivos exploratórios e não de conquista como os espanhóis. É o mar que nos dá o que os outros não têm. Aliás, é o Oceano que os outros não têm, que nos empurrou para novos mundos. Além disso como poucos povos nessa Europa, somos mistura explosiva de várias culturas. Celtas e germanos, de mediterrâneos e berberes. Fenícios e Normandos. Romanos, Suevos, Visigodos, Mouros, Judeus, Africanos. Somos portanto a Europa, o Mundo, em potencial genético.
Também percebi porque somos mais sonhadores e emotivos. Ou “sensíveis sem sermos fracos”. Não tínhamos aquela exuberância em gestos e palavras que tinham os italianos e só ligeiramente bêbados nos desinibiamos no meio de um grupo. Éramos como os espanhóis, individualistas, mas tínhamos solidariedade com os outros.
Éramos e vamos ser sempre únicos numa forma específica de saudade. Porque os romenos também a tinham e até a definiam com uma palavra própria como nós, mas a nossa saudade é uma saudade que se sonha, uma saudade que nos leva a agir e uma saudade que paradoxalmente nos traz também fatalismo. Compreendi porque é que os alemães, austríacos, holandeses não ostentavam o luxo como nós e os outros latinos tendo o seu “sentido capitalista estava mais apurado”. Os portugueses também me revelaram mais uma vez essa assimilação quase total à Roma onde se é Romano. Podemo-nos realmente adaptar facilmente a qualquer situação Acho que foi a nossa natural empatia e não termos “repugnância pelas outras raças” que nos fez mesclar tão bem naquele ambiente internacional.
Somos um povo eficaz na ironia porque nos gostamos de ver ao espelho todos os dias e temos medo do ridículo. Sabemos bem o que pode ser troçado em nós para o podermos aplicar nos outros. Os portugueses foram talvez os que deram mais alcunhas e apelidos aos outros, como o da rapariga alemã menos bonita a quem chamávamos simplesmente, “o Urso”.
A experiência com compatriotas nacionais e deste planeta fez-me amar mais as duas pátrias. Mas afinal não concordo muito com o Sócrates (o que nunca vai ser esquecido) quando diz que «não era ateniense nem grego, era um cidadão do mundo». Não posso ser tão radical. É verdade é que às vezes me sinto mais português, outras menos, sentindo-me sempre cidadão do mundo. Contudo esta humanidade vem da minha cultura, de uma cultura portuguesa que um dia gostava que se cumprisse. Porque acho que o exemplo que os portugueses por este mundo espalhados têm dado, tem sido bonito. Como é bonito italianos abraçarem-nos e dizerem que vão sentir a nossa falta, ou como é bonito espanhóis admitirem que não sabiam que Portugal era assim tão diferente. Como é bonito ouvir croatas desconhecidos num jardim a cantarem Amália Rodrigues e encontrarem pontes entre povos que estiveram em trevas. Como é bonito ouvir a estória de uma violinista húngara que o sonho de pequena no que toca a viagens sempre foi, e ainda é, ir ao ponto mais ocidental da Europa. Como é bonito ouvir um marroquino dizer “foda-se” e sorrir ou um americano gritar, “the fucking portuguese are great”. Como é bonito ouvir um norueguês (ver lista dos países mais desenvolvidos do mundo) dizer que gostava de viver em Portugal.
Eu também gostaria de viver em Portugal. O norueguês descobriu e eu tive a confirmação que nós somos um grande povo, com alma distinta, que temos pessoas criativas e dinâmicas, que marcamos pela diferença positiva. O que o noruguês não sabe é que o que não temos ainda é um país.G.F.
quinta-feira, setembro 08, 2005
bicicleta
O tempo não é um carro novo sem marcha atrás. O tempo é uma bicicleta de pneus carecas que se conduz embriagado quase sempre sozinho, de outras vezes com boleia, e cuja corrente pode ser boa e segura mas toda a gente sabe que mais cedo ou mais tarde te a vão roubar. G.F.
quarta-feira, setembro 07, 2005
FarWest
E tudo o vento levou naquele Golfo, berço da cultura mais genuinamente americana. E não levou só casas e vidas. Nos destroços do “Katrina” vai também o modelo de vida americano. O da brutal lei do mais forte em que quem tem possibilidade é seleccionado e quem é fraco sucumbe à batota de um estado inexplicavelmente atrasado nos seus deveres sociais. Um país que se esqueceu dos seus, atirados à selva neo-veneziana do salve-se quem puder ou da caridade privada de quem ainda vai tendo vergonha de ter tanto. A lógica pós-tragédia do “quem tiver a arma maior, sobrevive” prova a existência de um grande terceiro mundo não só económico, mas também ideológico, parco em humanidade e ali mesmo, tão longe de Bagdad e Kabul, tão perto de Washington, Uma conclusão a que chego é que qualquer governo constituído por cowboys arrisca-se a viver no FarWest.G.F.
graça
«Nascemos de graça e passamos a vida a tentar ganha-la.» Agostinho da Silva numa das melhores surpresas que o zapping me trouxe.
vitórias
Aqueles ténis da “Lacross” azul bebé não tinham atacadores. Eram de velcro e era simples calça-los, correr, chutar e descalça-los. As calças de bombazine castanhas tinham um distintivo do Benfica que dificilmente encobria a tatuada nódoa negra habitual da queda. A camisa de flanela amarela rubramente quadriculada, sempre desfraldada, limpava o suor de uma testa de puto. A camisola de lã aos losangos fazia de poste esquerdo e já tinha sido por duas vezes a causa polémica de um golo anulado. A bola já não tinha hexágonos. Na verdade, era mais câmara-de-ar que couro. Mas era uma bola muito boa. Nem saltava muito, nem era pesada. Era perfeita para aquele final de tarde de Novembro a chegar em que perdíamos 9 a 8. Não havia árbitro, havia bom senso. Não havia prémios de jogo, havia água de uma boca-de-incêndio arrombada pelos “grandes”. Não havia tempo, acabava aos 10 e mudava de campo aos 5. Mudar de campo era importante, porque naquela segunda parte tínhamos de jogar contra uma inclinação de 10 por cento diziam-nos. Mas nós nem sabíamos o que era uma inclinação de 10 por cento. Bastava saber que o lixado era ter de correr a subir ou pior, ter de correr a descer quando sofríamos a vergonha de um golo. Era importante fintar, mas mais imprescindível era não rematar para dentro da garagem do senhor Domingos. Acabava-se o jogo, acabavam-se os jogos até que alguém aparecesse com uma nova bola. E havia os donos da bola insuportáveis, os que não aceitavam uma decisão técnica da assembleia infantil e diziam que podiam acabar com tudo porque o esférico era deles. Isto quando não se compravam bolas a meias com o dinheiro esquecido nos estofos dos sofás dos pais. Importante era chegar aos 10, nem que já fossem horas do banho, nem que o lusco-fusco mal deixasse ver se a outra equipa tinha diminuído as balizas sem repararmos.
Aqueles ténis da "Lacross" azul bebé já tinham o calcanhar desfeito e a biqueira quase descosida mas tinham sido feitos para ele. Com eles era fácil fazer tudo, centrar como o Vítor Paneira, saltar e cabecear como o Rui Águas, chutar do meio campo e facturar à Isaías. Podia fazer-se tabelas nas garagens fechadas desde que não fizesse muito barulho. O nosso 9 a 9 tinha sido feito assim: com o esforço de um petardo traiçoeiro. Uns protestos e fintas depois, quando a mãe do guarda redes deles gritou pela janela que “ia ficar de castigo se não viesse já para cima”, este pediu para trocar avisando-o a bom som. Só que depois esqueceu-se que já não era o “redes”. È que a equipa deles estava sempre a trocar, nós não. Nós tínhamos um puto que não jogava mesmo nada à frente. Era gordo. Para compensar tínhamos um preto que driblava como o Maradona, mas que raramente marcava um golo. Infortúnios de uma equipa de putos com 9 anos.
Era nitidamente penalty apesar dos argumentos dos dois patrões da baliza. Decidiu-se que por via das dúvidas o penalty seria marcado de muito mais longe, quase da nossa baliza. O sol escondia-se atrás do monte e era difícil distinguir a mochila roxa e amarela que fazia de poste direito e a pedra de calçada branca. O puto da franja suada, dos ténis azul-bebé só queria que fosse golo, porque queria ganhar e porque estava cheio de fome e porque queria ir ver televisão. O puto nunca jogava nada, mas trabalhava em equipa. Corria com os pés para fora. Mas fazia bons passes, colocava bem a bola. Era a sua primeira vez de marcar e o gordo dizia-lhe ao ouvido que o lado esquerdo do porteiro era o débil. Foi nesse momento que ela passou, ia entrar no prédio, vinha do ballet. Deve ter pensado que éramos uns parvos por estar a jogar à bola naquelas horas tardias. Ou provavelmente deve ter desprezado completamente o jogo. Mas depois viu que todos estávamos atrás da linha da bola. Mesmo que não percebesse as regras viu que algo importante iria acontecer.
Aqueles ténis da “Lacross” eram verdadeiramente confortáveis. Remataria com a parte de dentro do pé, em jeito, ou de biqueira, com força? Correu desengonçadamente, e olhou para o lado direito rematando completamente à figura. Foi um frango, foi um golo e foi uma vitória. Quando todos já tinham ido embora, encontraram-se no elevador. Olharam os dois no espelho e ela disse-lhe a rir que ele estava a “suar que nem um porco”, ele respondeu que “mais valia suar que nem um porco que ser um”. Antes de chegar ao seu andar e sair ela ainda teve tempo de dizer que “os ténis deles já jantavam”. Quando lhe abriram a porta e se descalçou, o puto pensou que aqueles ténis azul bebé da “Lacross” com velcro e envelhecidos eram a melhor coisa do mundo. Não era uma miudinha tão estúpida como aquela que o ia fazer esquecer o golo daquele início de noite. Haveria amanhã tempo para que as mulheres o fizessem esquecer outras vitórias. G.F.
Da canção "Bocca di Rosa" de Fabrizio di André,1967
Chamavam-lhe Boca de Rosa. Colocava o amor sobre todas as coisas. Mal tinha descido no apeadeiro de Santo Hilário, vieram todos observa-la e logo ali descobriram que não se tratava de um missionário. Existem aqueles que fazem o amor por aborrecimento, outros que fazem o amor por profissão. Boca de Rosa não, fazia-o por paixão. Mas a paixão frequentemente conduz à satisfação da própria vontade e Boca de Rosa não se perguntava se o outro tinha o coração livre ou mulher. De um dia para o outro atiraram-se a si as cadelas a quem lhes tinha tirado o osso.
Sabe-se que as gentes dão bons conselhos, sentindo-se como Jesus no templo. Dão bons conselhos se não podem dar um mau exemplo. Assim, uma velha que nunca foi mulher, nunca teve filhos, sem ter mais desejo, começou a dar conselhos a toda a gente. Dirigindo-se às cornudas, apostrofou com palavras agudas: «O furto de amor será punido». E aquelas mulheres foram ao comissário e disseram sem parafrasear: «Aquela nojenta tem mais clientes que uma mercearia». Chegaram quatro polícias com penáculos e com armas. Um coração terno não é um dote da polícia, mas naquela vez, quando acompanharam Boca de Rosa ao apeadeiro, iam de má vontade.
Na estação estavam todos, desde o comissário ao sacristão, com os olhos vermelhos e chapéu na mão. Vieram saudar aquela que por pouco tempo trouxe o amor à sua aldeia. Havia um cartaz amarelo que dizia assim «Adeus Boca de Rosa, contigo parte a Primavera».
Mas uma notícia um pouco original não tem necessidade de nenhum jornal. Como uma flecha disparada de um arco andou veloz de boca em boca. Na estação sucessiva estava ainda mais gente do que naquela donde tinha partido. Havia aqueles que mandavam beijos, outros flores, outros que reservavam espaço por duas horas. O Pároco abençoou e foram todos em procissão. A Virgem na primeira fila, Boca de Rosa um pouco afastada. E assim foram pela aldeia. O amor sacro e o amor profano. trad.G.F.
elogio
«Gostava de ter tido um avô como tu, um pai. Se um dia poder escolher, gostaria de um marido como tu. Ter filhos. Iguais a ti.» V.
sábado, julho 09, 2005
Che cosa Padova vuole significare?
Abro as gavetas deste oraculo e descubro papelada que transformada em velha foi e vai sendo a minha vida. Um caminho que no ultimo ano tem sido tantas vezes repetido, feitos de ecos do passado e tantas vezes enternecidamente novo, surpreendente, encontrando novos cruzamentos de lugares e gentes.
Uma vida que tem mudado nos ultimos 10 meses, uma viagem que encontra um fim, um regresso dentro de pouco tempo. Tao pouco tempo que me sufoca pensa-lo. E nao querendo faze-lo, retorno a este blog para agradecer a todos os que continuaram a ler-me, aos que foram escrevendo mails, aos que me contaram estorias, aos que me vilipendiaram e aos que me amaram com palavras feias e bonitas.
Agora regresso para deixar um poema lido em italiano que resume meses de ausencia, que desenha a essencia da minha viagem e o que penso do seu fim. Depois, em Setembro, regresso. Porque em Setembro regressamos todos. G.F.
ITACA
Quando ti metterai in viaggio per Itaca
devi augurarti che la strada sia lunga
fertile in avventure e in esperienze.
I Lestrigoni e i Ciclopio la furia di Nettuno non temere,
non sarà questo il genere d'incontrise
il pensiero resta alto e il sentimento
fermo guida il tuo spirito e il tuo corpo.
In Ciclopi e Lestrigoni, no certoné nell'irato
Nettuno incapperaise non li porti dentrose l'anima
non te li mette contro.
Devi augurarti che la strada sia lungache
i mattini d'estate siano tanti
quando nei porti - finalmente e con che gioia
-toccherai terra tu per la prima volta:
negli empori fenici indugia e acquista
madreperle coralli ebano e ambre
tutta merce fina, anche aromi
penetranti d'ogni sorta, più aromi
inebrianti che puoi,
va in molte città egizie
impara una quantità di cose dai dotti.
Sempre devi avere in mente Itaca
- raggiungerla sia il pensiero costante.
Soprattutto, non affrettare il viaggio;
fa che duri a lungo, per anni, e che da vecchio
metta piede sull'isola, tu, ricco
dei tesori accumulati per strada
senza aspettarti ricchezze da Itaca.
Itaca ti ha dato il bel viaggio,
senza di lei mai ti saresti messo
in viaggio: che cos'altro ti aspetti?
E se la trovi povera, non per questo Itaca ti avrà deluso.
Fatto ormai savio, con tutta la tua esperienza addosso
Già tu avrai capito ciò che Itaca vuole significare.
Konstandinos Kavafis, 1910
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