terça-feira, outubro 25, 2005

dadaísmo equestre


(O texto que se segue é apenas o resultado de uma sugestão da Ana, "escreve sobre cavalos". Estão ali no Word outras coisas bonitas para serem publicadas mas ainda não tinha chegado a hora de o serem. Quis fazer algo realmente inútil e eis aqui o resultado. É um conto absurdo. Ou não, se gostares mesmo muito de cavalos.)

Aristides

«Tenho mesmo cara de cavalo» disse, olhando-se no espelho. De facto o nariz era feio e grande. Grande não. Enorme. Gigantesco nos dias de fraca auto-estima. O cabelo não ajudava ao disfarce do rosto hípico. “Estilo eighties electroclash”, gostava de definir. “Uma crina” sentenciámos nós. Aristides era seu nome.

Antes de lavar os portentosos dentes incisivos teve tempo para um pequeno-almoço rápido. Uma sopa de cavalo cansado. Bem disposto saiu de casa e entrou sem pressas no seu Citroen 2 cavalos, castanho velho. Ligou o Rádio e acelerou mais. “Agooora, agooora, és um cavalo de corriida!”- começou a cantar cada vez mal alto e possuído por uma energia. Ele não cantava propriamente: emitia gritos horrendos, esganiçando o timbre. Nós diziamos eufemisticamente que relinchava.

Estacionara o carro em dupla fila quando viu uma ruiva alta, calças de montar, generosas formas, descendo a rua num trote sensual. “Que cavalão!” pensou, imaginando-a em fantasias texanas, cavalgando-o entre lençóis e pradarias. Com a mente viajando dirigiu-se para o seu modesto trabalho no Campo Grande, onde limpava as cavalariças. O tempo todo que tinha vivido naquele meio equestre tinha-o tornado mais semelhante aos seres que ajudava a cuidar.

Tinha-lhe oferecido o emprego um General da sua terra. Ainda do tempo em que ele pertencera ao Regimento de Cavalaria número 2. Não se ganhava bem, mas também não era uma miséria e tinha sido um favor de tão cavalheiro General. «O General é um homem valente e um homem valente e um cavalo bom são reconhecidos quando chegam», dizia-lhe seu avô, pintor, de quem tinha herdado aquele precioso cavalete que todos desconheciam. Nesse cavalete pintava o seu mundo, as corridas, hipogrifos majestosos, tudo sempre em perspectiva cavaleira. Nas noites de insónia, encontrava a liberdade que perdera. Retornava a esse tempo em que tanto gostava de andar às cavalitas do avô. Mas seu patrão não o deixava sonhar alto, não o deixava voltar inebriado à sua ilha de sonho, a ilha de Basilia. Era um homem mau e arrogante, um cavaleirão. Quantas vezes pouco faltou para que saísse da boca de Aristides um grito de revolta a seu patrão, um “ e se fosses fazer broches a cavalos hein?” A única vez que tiveram relações cordiais foi quando o fulano ofereceu uma almoçarada a todos os empregados. Ainda se lembrava da ementa desse dia histórico: Arroz de tomate com cavalas.

A Aristides a vida não dera para mais. Na escola esteve perto de ser considerado cretino. Era um rapaz de hipocampo e hipotálamo diminutos. “Uma cavalgação”, avaliava a seus pais, resignada, a sua professora da primária. Na sua adolescência nutriu uma paixão por motas e passava horas equídeas a fazer-se às meninas da sua aldeia, perto da Golegã, sacando cavalinhos vertiginosos. Assim vagueava, assim queimava tempos, assim ia “vendo cavalinhos – fuscos” como lhe sorria o avô, obeso como um hipopótamo.

Havia um colega de trabalho com quem gostava de passar tempo, o Jolly, a quem ele carinhosamente chamava Jumper. Na hora do almoço jogavam Xadrez. Embora não fossem grandes mestres, ambos se deliciavam em apostar no dia em que fosse o cavalo a comer a rainha. Jolly por coincidência tinha feito parte dos grupos de pressão contra os talhos de carne de cavalo de Lisboa, sendo fundador do movimento “Morte ao Hipófago”.

Aristides, enquanto jogava Xadrez, pensava na sua família. A mulher tinha-o trocado por um homem ainda mais feio que ele. “Andara de cavalo para burro”. O filho, já com seu futuro hipotecado no dia em que nasceu, meteu-se na droga. Chutava cavalo para os lados do Intendente. Era sonho de Aristides que seu rebento entrasse numa arena montado num como o “Russo” do fado. Ou mesmo que se tornasse num conceituado Hipólogo. Mas não. Seu filho nunca fora um hipomaníaco como seu pai e nem um manco poney lhe servira de montada.

O nosso homem acabava os seus deveres e regressava normalmente de comboio, o “cavalo de ferro” como gostava de vislumbrar em “letras à john wayne”. Regressava a casa assim porque a sua carroça era sempre rebocada. Jantava sempre um ovo a cavalo à pressa e duas horas depois estava no Casino a jogar nos cavalos de corrida. Perdia assim o resto da sua miséria. Quando ganhava algum embebedava-se com doses verdadeiramente para cavalo num bar de esquina, o “Rocinante”. Passava depois à porta das discotecas para procurar cavalgadas esporádicas mas já ninguém o deixava entrar. Então, cá fora, sonhava em tornar-se num Cavalo de Tróia e vencer dentro da pista de dança os surpreendidos inimigos.

Antes de chegar a casa, passava secretamente pela cavalariça onde trabalhava e tentava adivinhar o futuro através do relinchar dos cavalos. A verdade escondida é que Aristides se tinha tornado um praticante da oculta hipomancia antiga celta.

Estava a ficar louco. E louco estava naquela noite de 2002, que segundo o Zodíaco chinês era também o seu ano de sorte. Ao cair numa viela perdido de embriaguês vislumbrou uma cigana que trazia um potro. Estendo-lhe a rédea, sorriu e disse “ofereço-te, é um puro sangue lusitano”. Aristides, bom conhecedor, pediu para olhar os dentes e comprovar. Assim que o animal lhe abriu a boca levou um tremendo coice na testa. No dia seguinte antes de suspirar pela última vez esvaído em sangue, Aristides teve tempo de nos dizer: «A cavalo dado não se olha o dente..» G.F.

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