quarta-feira, setembro 07, 2005

vitórias

Aqueles ténis da “Lacross” azul bebé não tinham atacadores. Eram de velcro e era simples calça-los, correr, chutar e descalça-los. As calças de bombazine castanhas tinham um distintivo do Benfica que dificilmente encobria a tatuada nódoa negra habitual da queda. A camisa de flanela amarela rubramente quadriculada, sempre desfraldada, limpava o suor de uma testa de puto. A camisola de lã aos losangos fazia de poste esquerdo e já tinha sido por duas vezes a causa polémica de um golo anulado. A bola já não tinha hexágonos. Na verdade, era mais câmara-de-ar que couro. Mas era uma bola muito boa. Nem saltava muito, nem era pesada. Era perfeita para aquele final de tarde de Novembro a chegar em que perdíamos 9 a 8. Não havia árbitro, havia bom senso. Não havia prémios de jogo, havia água de uma boca-de-incêndio arrombada pelos “grandes”. Não havia tempo, acabava aos 10 e mudava de campo aos 5. Mudar de campo era importante, porque naquela segunda parte tínhamos de jogar contra uma inclinação de 10 por cento diziam-nos. Mas nós nem sabíamos o que era uma inclinação de 10 por cento. Bastava saber que o lixado era ter de correr a subir ou pior, ter de correr a descer quando sofríamos a vergonha de um golo. Era importante fintar, mas mais imprescindível era não rematar para dentro da garagem do senhor Domingos. Acabava-se o jogo, acabavam-se os jogos até que alguém aparecesse com uma nova bola. E havia os donos da bola insuportáveis, os que não aceitavam uma decisão técnica da assembleia infantil e diziam que podiam acabar com tudo porque o esférico era deles. Isto quando não se compravam bolas a meias com o dinheiro esquecido nos estofos dos sofás dos pais. Importante era chegar aos 10, nem que já fossem horas do banho, nem que o lusco-fusco mal deixasse ver se a outra equipa tinha diminuído as balizas sem repararmos.

Aqueles ténis da "Lacross" azul bebé já tinham o calcanhar desfeito e a biqueira quase descosida mas tinham sido feitos para ele. Com eles era fácil fazer tudo, centrar como o Vítor Paneira, saltar e cabecear como o Rui Águas, chutar do meio campo e facturar à Isaías. Podia fazer-se tabelas nas garagens fechadas desde que não fizesse muito barulho. O nosso 9 a 9 tinha sido feito assim: com o esforço de um petardo traiçoeiro. Uns protestos e fintas depois, quando a mãe do guarda redes deles gritou pela janela que “ia ficar de castigo se não viesse já para cima”, este pediu para trocar avisando-o a bom som. Só que depois esqueceu-se que já não era o “redes”. È que a equipa deles estava sempre a trocar, nós não. Nós tínhamos um puto que não jogava mesmo nada à frente. Era gordo. Para compensar tínhamos um preto que driblava como o Maradona, mas que raramente marcava um golo. Infortúnios de uma equipa de putos com 9 anos.

Era nitidamente penalty apesar dos argumentos dos dois patrões da baliza. Decidiu-se que por via das dúvidas o penalty seria marcado de muito mais longe, quase da nossa baliza. O sol escondia-se atrás do monte e era difícil distinguir a mochila roxa e amarela que fazia de poste direito e a pedra de calçada branca. O puto da franja suada, dos ténis azul-bebé só queria que fosse golo, porque queria ganhar e porque estava cheio de fome e porque queria ir ver televisão. O puto nunca jogava nada, mas trabalhava em equipa. Corria com os pés para fora. Mas fazia bons passes, colocava bem a bola. Era a sua primeira vez de marcar e o gordo dizia-lhe ao ouvido que o lado esquerdo do porteiro era o débil. Foi nesse momento que ela passou, ia entrar no prédio, vinha do ballet. Deve ter pensado que éramos uns parvos por estar a jogar à bola naquelas horas tardias. Ou provavelmente deve ter desprezado completamente o jogo. Mas depois viu que todos estávamos atrás da linha da bola. Mesmo que não percebesse as regras viu que algo importante iria acontecer.

Aqueles ténis da “Lacross” eram verdadeiramente confortáveis. Remataria com a parte de dentro do pé, em jeito, ou de biqueira, com força? Correu desengonçadamente, e olhou para o lado direito rematando completamente à figura. Foi um frango, foi um golo e foi uma vitória. Quando todos já tinham ido embora, encontraram-se no elevador. Olharam os dois no espelho e ela disse-lhe a rir que ele estava a “suar que nem um porco”, ele respondeu que “mais valia suar que nem um porco que ser um”. Antes de chegar ao seu andar e sair ela ainda teve tempo de dizer que “os ténis deles já jantavam”. Quando lhe abriram a porta e se descalçou, o puto pensou que aqueles ténis azul bebé da “Lacross” com velcro e envelhecidos eram a melhor coisa do mundo. Não era uma miudinha tão estúpida como aquela que o ia fazer esquecer o golo daquele início de noite. Haveria amanhã tempo para que as mulheres o fizessem esquecer outras vitórias. G.F.

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