quarta-feira, novembro 18, 2009

Há Dias


Há dias em que julgamos
que todo o lixo do mundo
nos cai em cima
depois ao chegarmos à varanda avistamos
as crianças correndo no molhe
enquanto cantam
não lhes sei o nome
uma ou outra parece-me comigo
quero eu dizer :
com o que fui
quando cheguei a ser luminosa
presença da graça
ou da alegria
um sorriso abre-se então
num verão antigo
e dura
dura ainda.


Eugénio de Andrade
de Os lugares de Lume

cometas


'Bora aí contar cometas miúda? È tarde? A cidade ilumina demasiado o espaço? Ia jurar que ontem vi um cometa daqueles bem grandes, aqueles cometas Alentejanos sabes? Ia jurar que os cometas também se despenham na cidade, tipo fogo sem artifício com os vectores desnorteados, ali sem alvos, só para caírem e nós a aproveitar as suas caudas antes de inexistirem. Bora lá miúda, pára de pensar nisso, pára de ler blogues narcísicos e vamos fazer filmes de cometas para pôr no youtube. Apaga a tua conta de facebook, despede-te da tua quinta e dos teus quizzes e dos feeds de quem já não ve os teus feeds. Despede-te disto e vem contar dois ou três cometas. Não estás propriamente sozinha. Nós também pensávamos estar, mas há sempre um étê que aterra de vez em quando e nos faz descobrir que somos bués e quês. Bora lá miúda, não comas mais gelados, larga a sic mulher, daqui a 1 ano ninguém vai saber quem são essas escanzeladas e nós vamos saber quantos cometas contámos esta noite. Bora lá, vamos de carro ou foguetão, depende do preço da gasosa. Vamos ao gordalhufo daquela churrascaria suada, molho tipo maçã “ranheta” à fartazana, ceia dos Deuses. No caminho uns finos do Diabo, se calhar é melhor ir de bicicleta? Siga lá miúda! Está a chover? Vamos àquela loja 24h dos chineses, os tipos vendem chapéus de chuva como quem vende abafados a agro-betos. Sim pá, aqueles chineses sempre com cara de poucos amigos, com olhares taciturnos, parecem os índios, sempre fodidos com os caubóis. Tantos chineses no mundo e eles com tão poucos amigos, não achas estranho? É porque eles nem contam cometas, só pode! Vamos lá, esquece isso, é segunda-feira e depois? Depois nada: hoje há chuva de cometas, o verão ainda não acabou, pelo menos em Buenos Aires, tenho quase a certeza que não! Mas vens ou não? Vamos de metro? Apanhamos o que diz “Reservado”, sempre quisemos ir para destino reservado. Observar cometas em destino reservado podia estar em quarto ou quinta na tua lista de desejos, logo a seguir ao teres uma aventura tórrida com o Gael Garcia Bernal, no meio do Utacama. Levanta-te pá, vamos em frente. Esquece isso, larga isso, estás parvinha? O futuro é um país aqui pertinho e nem precisamos de bilhete nem visto, já lá estamos. É um salto que nem precisa de ser clandestino para te pores logo fina. É isso, vem bailar, eu sei que gostas de dançar, olha dançamos depois o… hummm o mambo? O 5? Não pá, o dois ou ou três, mais que quatro mambos sem identidade chateiam para caraças. Eh pá, ouves a telefonia, os cometas estão aí, quantos não teremos já perdido? Ficas aí n’é, no teu sofá-puzzle do IKEA, a comer gelados do pingo doce e a rebolar pelos canais e pelo Messenger sem nada novo? Qual é a piada de jogar solitárias sem poder partir os baralhos? Bora lá miúda, tu ainda não sabes que quiseste vir! Olha o ponteiro dos segundos todo cínico a mandar-nos à cara o nosso desaproveitamento desta noite, vês? Vais ficar aí de pijama enquanto a vida muda de assunto e tu não tens voto na matéria? Olha que os cometas podem ficar zangados connosco, eles são tipo actores, precisam de público, precisam de ser embalados. Anda lá embalar cometas míuda! Eles podem ficar chateados e não querer cair. Vão ficar possessos! Irados! Irados sim, tão fodidos como ficaram as Zebras quando Noé lhes disse que a entrada na Arca era por ordem Alfabética: imaginas o quão encolerizados podem ficar? Isso, é isso: traz o teu Ipod, fazemos uma playlist das melhores canções dos nossos mundos e botamos uma shuffle esquizo-romântico de embalar … Esse vestido para veres cometas? É o mais bonito! Só tens um vestido feio e eu acho que o pusemos ontem no caixote dos vestidos feios, ali na esquina da rua dos passos perdidos, mas esse sim, sim! Esse é o mais bonito sim… Bom, se quiseres eu não olho enquanto te vestes para irmos ver cometas, embora todas as vezes que te vi vestir, outras tantas quis repetir e outros quádruplos despir. Nem pelo canto do olho miúda? Só de relance, posso mentir e dizer que a minha memória fotográfica já não é óptima para instantes! Só um nano-frame do corpo mais bonito do planeta onde hoje vão chover cometas, estou a pedir demais? Nem um frame? E se pedisse a longa metragem!? Ah, já estás pronta ...Sim… estás linda, não tenho nem preciso de palavras…
Olha, achas que ainda precisamos da porra dos cometas? G.F.

terça-feira, novembro 17, 2009

ciências humanas




dor de burro


Há quanto tempo não sentes aquela dor de burro? Quantos anos passaram desde a última vez que correste milhas só para espetar um patardo naquela bola cinzenta sem gomos e marcar o 10 a 6? Quando é que foi a última vez que fintaste os teus amigos todos mas o guarda -redes te estragou a tarde ao apunhalar o esférico mesmo em cima da linha de golo imaginária? Quantos anos passaram desde a última vez que chegaste a casa de ténis Olimpic de mofo e planta rota, meias encharcadas pelo canto desnivelado do ringue e uma vontade imperial de matar todas as sedes? Quando foi a última vez que caíste no chão a rir depois do livre ter sido directo nos tomates do Sérgio e indirecto no caixa d’óculos do Nuno Tiago? Quantos anos passaram desde que nos roubaram as balizas e a tua monte campo servia de argumento para golos altamente roubados devido a ressaltos de ficção amadora? Quando foi a última vez que festejaste um golo no ângulo e o dedicaste à miúda que achavas que tinha o cabelo mais fixe da turma? Há quanto tempo não sentes aquela dor de burro? G.F.

sou guloso


Sou guloso: como tudo, nunca pouso. Sou guloso, rapo tudo, sou manhoso. Sou guloso, saco tudo ao penoso. Sou guloso. Sou guloso... Sou guloso deslapido orgulhoso. Sou guloso, corrompo em tom sedoso. Sou guloso, amorteço a reforma ao idoso. Sou guloso em camarote do glorioso. Sou guloso, torço os cornos ao honroso. Sou guloso, prevarico cauteloso. Sou guloso, usurário escabroso. Sou guloso! Sou tão guloso! Sou guloso, apartidário faccioso. Sou guloso e o juiz é comichoso. Sou guloso e o juiz é meu esposo. Sou guloso, sou mesmo guloso! Sou guloso, dá-me um abraço caloroso. Sou guloso, transgrido em tom jocoso. Sou guloso, venero a bolsa ansioso. Sou guloso, suborno em tom gracioso.SOU GULOSO! SOU GULOSO! Som guloso de carácter gorduroso. Sou guloso nem sou muito ambicioso. Sou guloso chico-esperto luminoso. Sou guloso da verdade receoso. Sou guloso, o fulano mais untoso. Sou guloso o mais chato desdenhoso. Sou guloso, galocha em mundo pantanoso. Sou guloso, nunca acordo bem cheiroso. Sou guloso, sempre fui religioso. Sou guloso, nunca durmo rancoroso. Sou guloso de código ético gasoso. Sim sou guloso. E se um dia me quiserem tirar as gulodices, essa turba recta e invejosa: estou tranquilo, a nossa Família é gulosa.
G.F.

gajos da frente


«Ora, topa-me só aqueles gajos da frente. Eles preocupam-se, contam os quilómetros, estão a pensar onde é que vão dormir hoje à noite, quanto dinheiro têm para a gasolina, se vai chover, como é que vão conseguir lá chegar… e seja como for eles vão lá chegar, vais ver. Mas precisam de se preocupar e de trair o tempo com urgências falsas ou não, meramente ansiosos e apreensivos. As suas almas só ficam sossegadas apegando-se a qualquer preocupação evidente e comprovada, e logo que a encontram assumem expressões faciais a condizer, que são, bem vês, de infelicidade, e durante esse tempo todas as coisas lhes passam ao lado e eles sabem disso e também isso os preocupa infinitamente. Ouve só! Ouve só!» Jack Kerouac, On the Road

quarta-feira, setembro 23, 2009

rearquitectura


Era uma vez uma cidade sem gentes que fossem gente. Sem promessas de amor às dez pás quatro, sem miras nos miradouros, sem pianadas de jazz em bares já aferrolhados, sem putos a chatearem os pais para lhes comprarem mais uma tartaruga ninja. Nessa cidade, as gentes que não eram gente nem se apercebiam destas ausências. Andavam à deriva e ensimesmadas face à desmaravilha de não terem quase nada para oferecer os outros. O único pormenor que mais deixava vaga, e reparem que nem era a todos, só aos que usavam as perspectivas de quando a quando no zoom in, era o simples facto entristecedor de que esta cidade não tinha (e não havia memória de ter tido) linhas. Não tinha linhas. Nem cantos, nem molduras, nem círculos, nem losangos, nem sinais, nem quadros, nem edifícios, nem estradas, nem pontes. Nem cruzamentos. Simples facto entristecedor não, assunto mais trágico e mais grave que isso: é que nem sequer se via um rabisco clandestino nas mesas novas da É Bê, Dois mais Três.


Claro esteve que, como em todas as cidades sem gente que seja a gente, tinha de chegar alguém para gizar mudanças drástico/heróicas utopicamente criadoras, nos corações dos mais novos incautos, de bem-estar duradouro e assegurado para mais de cinco ou sete gerações vindouras. Mais simples: bastou, ao meio dia menos quinze, aterrar na cidade (a das gentes que não eram como a gente) um rapazola com um lápis amarelo e preto. Um lápizico com poucas afiadelas de vida. Trazia-o na orelha esquerda. Mais do que isso trazia de si um sorriso e uma ou outra ruga por, provavelmente noutros ontens, já ter repetido tal gesto. Além disso e principalmente, não trazia consigo quase nenhuma régua.

Nem foi preciso “aos poucos”. É que foi logo: tudo mudou. Força de peito, alma nos bíceps, a cada risco as gentes foram construindo aquilo a que mais tarde um outro chamou de «música petrificada». Estava arquitectada a nossa cidade de gentes já como gente e como a gente. E a gente esteve seis dias a beber e a comer. A gente esteve seis dias a fazer e a refazer o amor nas inexistentes fronteiras delineadas dos corpos, par a par. A gente esteve seis dias a metralhar preconceitos em tabernas e em varandas para aquelas fontes desenhadas por amor; A gente esteve seis dias a cantar medleys bem desatinados e grandes hinos bem desafinados. A gente esteve seis dias a usurpar-se sem licença da vida feliz uns dos outros. A gente esteve seis dias a libertar, sem artifícios, o fogo tão preso de tantos outros dias sem maravilhas. E ao sétimo dia? Ao sétimo dia a gente obviamente ressacou.

Foi quando, exactamente na esquina traçada dessa ressaca, uma miúda apareceu. Trazia uma borracha e achou (por bem ou por mal, por medo ou por sensatez - a gente não tem conclusões para isto), apagar devagar tudo o que tinha sido arquitectado. Claro esteve que, com tudo apagado, as gentes deixaram de ser gente. Voltaram às rotinas daquilo que mais sabiam fazer ou desfazer. Por exemplo, tentaram ter finais de tarde bem dispostinhos. Tentaram inventar palavrinhas como “saudade” para poderem falar, de mãos apoiadas na mesa do cafézinho, daqueles tempos em que não baixaram os braços. Tentaram ter programinhas de OTL alternativos e sublimar com fotogramas de autores neuróticos, as horas pop descomplexadas e o roque à antiga que as fez feliz nos dias em que havia projectos. Tentaram apagar-se em corpos já com fronteiras. Tentaram viver a vida que deviam viver e continuar a não ter nada para receber e ainda menos para dar. Tentaram ir poupando energia acreditando em ficções não consumadas mas seguras. Tentaram recalcar o próprio desenho a lápis do vento livre mas efémero. Depois de tudo apagado, as coisas foram voltando àquela bonança desalmada de outrora. E a gente? A gente foi-se tornando anónima.

Claro está que, como acontece sempre nestas cidades em que ainda há gente, nem tudo estava apagado. Secretamente precavidos de memória e uma ou outra folha de papel vegetal, algumas gentes conseguiram reservar algumas linhas de esperança. E o rapaz? O rapaz já só tinha um afia, mas ainda tinha o sorriso e as rugas do sorriso e as novas outras rugas dos dias apagados, não fosse o diabo tecê-las. Mais do que isso ainda tinha amigos. Noves fora, bastariam somente alguns dias mais apagados para que a cidade sem Gente voltasse a acender-se e voltasse a ser Cidade.

Bastaria isso ou, como todos sabiam mas ninguém queria profetizar, bastaria que aparecesse alguma miúda que odiasse borrachas e aterrasse na cidade de gente como a gente, por volta da meia-noite menos quinze, com um sorriso luminoso e um lápis. Ou uma lapiseira. Sim, uma lapiseira daquelas cor-de-rosa sabem? Tipo aquelas que as miúdas usavam para reconstruírem os nossos mundos, nas mesas da É Bê Dois mais Três.

segunda-feira, agosto 10, 2009

sextas-feiras

Amílcar Pereira



Amílcar Pereira ainda dedilha as páginas amarelas quando precisa de alguém que perceba de sifões. Amílcar Pereira, 77 anos, ainda usa o seu telefone verde de discar. «Interessa-me aquele barulhinho, quando a roda volta ao início». A lista mais actualizada que tem é de 2001, ali ao canto, namorando a fuligem. Depois disso nunca mais lhe deixaram nenhuma à porta. Amílcar Pereira diz de cor saber 200 e tal números de telefone de amigos e familiares embora admita já se ter enganado neste ou naquele Zé. Amílcar Pereira até ao verão do euro, ainda era quem carregava ao ombro as botijas de gás. Agora trá -las com um carrinho de mão. Olha de soslaio para quem gosta de canalizar tudo, de lado para quem lhe promete o facilitismo e lhe promete mais tempo. Disse-lhes: Mais cómodo? Mais tempo? Para que quero eu mais tempo, tenho 77, caralho!». Olha para nós sempre com olhos de adeus. Sabe que não estará cá amanhã. Viveu todas as guerras: as mundiais e as outras mais bélicas, as conjugais. Amílcar Pereira não está cansado. Sabe perfeitamente o que é o Google e lamenta quem o conhece, porque ele sempre preferiu saber as coisas pelos outros. Lamenta quem lhe dá informação fidedigna. Lamenta quem não precisa de memorizar nada. Amílcar Pereira adora mentiras, bazófias, histórias de faca e alguidar, conquistas de marinheiros e tretas de caçadores. Lembra-se de tudo. De quase tudo. Uma vez esqueceu-se de renovar o cartão de eleitor. Vai-se esquecendo de votar : não era bem votar, era «rabiscar com afeito grandes pirilaus tal fosse o tamanho das listas». Quando chega a casa tudo lhe consola, principalmente porque ficou viúvo. Mente, sente-se vazio por não ter ninguém a quem dizer sempre que sim. Não precisa de novas oportunidades, foi pescando as que apareceram. Não tem necessidade de dizer aos outros o que pensa, o que está a fazer, o que acha da merda da crise ou da morte do «velho da Guerra.». Não tem necessidade de perguntar aos outros o que pensam, de lhes responder ao exibicionismo. Acredita num Deus fêmea, é a «única razão pela qual isto anda tudo fodido, mas é ao mesmo tempo tão bonito». Amílcar Pereira ainda dedilha as páginas amarelas quando precisa de alguém que perceba de sifões, de cifrões, de excomunhões. Amílcar Pereira, 77 anos, morreu hoje de manhã, maldizendo e blasfemando contra as mudanças instantâneas da vida. Jurou antes do último suspiro, amor eterno ao gerúndio e ódio imortal ao futuro próximo. Teve tempo de por umas palmilhas novas pois, acredita, que há-de ser longo o trilho para o inferno. Depois pegou no seu velho bandolim, deitou-se por cima de uma arca onde guardava os seus livros de cowboys, trauteou uma canção que a mãe lhe cantava e assim restou, dedilhando eternamente um fá sustenido, início de mais um Amílcar Pereira por inventar. G.F.

sexta-feira, agosto 07, 2009

guiar-te.

Bastavas tu para eu ser alegre. Sopro seco esvoaçando-me os cabelos, céu estrangeiro, mais uma manhã a menos. Descontando as bocas cruas que beijei ou os lençóis onde me perdi, o quociente de tudo era, sempre foi, guiar-te. Guiar-te pelos alpendres, pelos telheiros, desviar-te pelas arcadas. Parar-te para falar aos grandes amigos que aquele pequeno Mundo me fez conhecer. Conduzir-te pelas praças, de taça de vinho na sinistra mão e atravessar aquela ponte já longe, o rio sem meio de andar e os dois reflexos de nós correndo. Sozinho, completamente sozinho contigo. Só contigo eu navegava. Viver não era mesmo preciso. Partíamos todos os dias para os mesmos sítios, para as mesmas gentes, para os mesmos hábitos. E partíamos com a mesma estupefacção com que nos foragíamos em tardes de domingo para cada vez mais estranhas estradas distantes da nossa casa.

No pico de Julho, acelerava contigo. Refrescava-me com a brisa de uma saudade futura de te ter que deixar. Deixar-te de mão dada com Agosto a ausentar-se também ele a cada manhã ganha à nossa existência sem tempo. Tu e o melhor gelado da cidade na destra mão faziam-me esquecer o sol quente. Talvez fosse a nossa velocidade, o fervor das ultrapassagens aos sorrisos daqueles tantos passeios que nos admiravam. Sim talvez fosse a velocidade de um estranho num mundo fora do mundo a fazer-me esquecer de te imaginar depois, provavelmente já entregue a outro quando todos começássemos a regressar a novos inícios de capítulos.

Às vezes não me deixavas travar, levavas-me contra as coisas palpáveis, contra uma realidade que não me chegava a magoar, onde o chão proibia qualquer leite derramado. Fazias-me esquecer os prólogos e eu, tantas vezes embriagado, dependia de ti para alcançar todos, para tocar em todas. Para ser o Rei daquele mundo. Para chegar ao palco alegórico de tantas humanas noites. Para te redescobrir sempre e levar-te eu a nossa casa. Sempre hoje, sempre agora, era eu ou eras tu quem nos levava a casa? Amanhã serias de outro porque naquela dimensão és sempre livre e o outro também nunca será teu, por mais que te mude, ou te descubra cadeados distintos. O outro também vai ter de partir. Sim eu tinha a tua chave. E era arrebatado. Não por ti mas pelo que me fazias sentir. Quantas vezes caímos juntos? Quantas vezes me apeteceu bater-te por me teres falhado e desiludido? Quantas vezes me tiveste de levar pela mão para que não tropeçássemos nos carris ainda inúteis? Eu e tu na sombra, não tínhamos inicio nem fim: Continuavas-me. E por continuar, a humidade de sabor a solto nos meus olhos. E por continuar a majestade de possuir todas as nossas ruas, todos os outros sorrisos a derreterem-se daquelas clarabóias, todos os abraços de aperitivos, todo o meu super-heroísmo mal disfarçado.

Bastavas tu para eu ser alegre. Se me perguntarem se eu já sou feliz, eu posso circunscrever-me a responder que ainda não, não como quando te pedalava de olhos fechados a cantar a napolitana universal, embriagado de vinho, poucas virtudes e a poesia de ver um admirável planeta meu arquitectado de paz, girando ao meu redor. Cada vez mais rápido, esperança liquefeita nas maçãs do rosto, cabelos despenteados, mãos firmes agarrando-te. Se me perguntarem se eu já sou livre, terei que outra vez tropeçar, terei que me mascarar, terei que lhes dizer que ainda não. Pelo menos não tanto como quando te tinha, bicicleta roubada a Padova. G.F.

sábado, janeiro 24, 2009

rasteira


Ontem rasteirei-te à saída do colégio. Tinhas o cabelo menos curto e eu tinha as tardes mais longas para poder jogar aos apurados na clareira que diziam lembrar o Barnabéu. Eu aperfeiçoava técnicas para te conseguir estatelada no chão e tu apuravas milhares de predicados e complementos indirectos com as tuas Polly Pockets. Não sabia o que eram recibos verdes, quanto custava o barril de petróleo ou que o meu pai podia um dia tornar-se velho. Nas noites de viagens na penumbra, não havia bairros, nem álcool, nem dilemas. O caminho para eu poder estar confortavelmente satisfeito era traçado a saquetas de cromos dos Caça-Fantasmas e ao facto de esperar que, no dia em que fosse novamente chefe de turma, entregar o teu dossier depois dos outros todos e deixar-te lá dentro um tosco desenho feito a a canetas de filtro Molin. Então viajava contigo por todos os países que o Eládio no canal 2 me falava e tornava-me no herói mais forte, mais bonito e mais adorado do Planeta e tu mais fantástica que todas as raparigas da nossa idade. Até quase da Ariel, a Pequena Sereia. Depois eu adormecia e, na manhã seguinte o meu despertador ainda era a minha mãe. Eu gostava de ti mas gostava muito mais dos apurados e do Brinca Brincando. Por isso, tanto me fazia que já não fosse a única pessoa a quem pedias o 5 no bate pé. Só que naquele dia tu estavas tão bonita que tinha mesmo de te rasteirar à saída do colégio. Não te aleijaste, o que prova a ineficácia das minhas rasteiras. Sorriste, chamaste-me parvo e perguntaste se eu queria uma pastilha gorila de banana ou morango. Eu escolhi morango e ficámos a tarde toda a rebentar balões peganhosos na cara um do outro. Mereceste e bem a rasteira que te fiz ontem à saída do colégio. G.F.

sexta-feira, janeiro 23, 2009

fissuras




Nove minutos antes da maré encher totalmente subiram ao palco escuro. Procuraram ao longo da vida o silêncio e ali, quando o encontraram, a primeira coisa de que se lembraram foi de contar cometas. Depois fartaram-se, preferiram ouvir-se, beijar e gritar. Enunciaram o seu único manifesto de amor e empacotaram a megadrive, os cortinados, o ipod, os postais de Lubliana, o tapete, a máquina de fazer pipocas e o crucifixo. Optaram pelo Regional e só pararam perto de Vila Flor. Rodaram as chaves de casa. Duas vezes: e se roda duas vezes não está ninguém. Não estava. A maré já esvaziara e havia mais vontade, mais fome de se perderem nas roldanas do corpo um do outro, encontrando o amor de nenhum Deus além do seu orgasmo. De manhã um caos calmo depois do apostolado da carne e do prazer da entrega. Olharam-se um no outro, no escuro, no outro palco. Outra vez menos virgem, Maria adormecia no quarto crescente de Mohamed. Absolutamente diferentes sem precisarem de partir. Sol poente como no filme da tarde de domingo passado. Loiça do IKEA por lavar. Absolutamente diferentes sem precisarem de ficar. Pequenas imperfeições em cada um. Os sinos tocaram nas mesquitas e casaram-se, quando ao longe megafones lhes pregavam sarilhos. Encontraram-se nas lacunas um do outro. Um minuto depois da maré voltar a encher sabiam que tudo tem rasgos, fissuras. É exactamente por aí que a luz surge.
G.F.

(ao Patriarca)

Achas que já se foram embora?

fuga (em balão)


Sovietes partem de balão foragidos, atalhando os céus que espelham o Barents. Sem Deus, com apenas a sua Cor, enfadados, dançam para esquecer o frio e relembrar a Mãe. Içam ainda rubras bandeiras. Queimam Gorbatchevs de 2x2, cantam internacionais. Há fome. Um esconde dos outros assassinatos em massa, outro acorda intermitentemente em arquipélagos de gelo siberianos, um último atira-se depois do último shot de vodka. Há estéril festa rija no balão desamparado sem destino. Todos iguais e acabados. Poucos esperam ser mais que foragidos. Diz-se que um, sorrindo, rezou pela primeira vez e chorou.

Executivos partem de balão foragidos, atalhando os céus que espelham o Beufort. Sem Dólares, com apenas o seu corpo, enfadados, dançam para esquecer o frio e relembrar a Bolsa. Içam ainda taças douradas. Queimam Che Guevaras de 2x2, cantam Sinatra. Há fome. Todos escondem de um que o vão comer cru, outro acorda intermitentemente em pangeias de bairros suburbanos dos avós, um último atira-se depois do último shot de vodka. Há rija festa estéril no balão desamparado sem destino. Todos diferentes e acabados. Todos esperam ser os melhores foragidos. Diz-se que um, chorando, rezou pela primeira vez e sorriu. G.F.

Guaranteed



On bended knee is no way to be free
Lifting up an empty cup, I ask silently
All my destinations will accept the one that's me
So I can breathe...

Circles they grow and they swallow people whole
Half their lives they say goodnight to wives they'll never know

A mind full of questions, and a teacher in my soul
And so it goes...


Don't come closer or I'll have to go
Holding me like gravity are places that pull

If ever there was someone to keep me at home It would be you...

Everyone I come across, in cages they bought
They think of me and my wandering, but I'm never what they thought

I've got my indignation, but I'm pure in all my thoughts I'm alive...

Wind in my hair, I feel part of everywhere

Underneath my being is a road that disappeared

Late at night I hear the trees, they're singing with the dead Overhead...

Leave it to me as I find a way to be

Consider me a satellite, forever orbiting

I knew all the rules, but the rules did not know me
Guaranteed.

Eddie Vedder, Into The Wild, 2007

L.A.P.D. e N.Y.P.D. VS GNR

Confunde-me a ineficácia e incompetência dos departamentos da Policia de Los Angeles e New York. Porque é que quando são preciso reforços, vão 2 agentes em cada carro, chegando a verificar-se um tráfego do arco da velha nas ruas limítrofes aos bancos reféns e inclusive pequenos acidentes ao estacionarem todos ao mesmo tempo? Até a GNR tem carrinhas e minibuses de intervenção. G.F.

grace


Quando tinha 7 anos aprendi a canção “Amazing Grace”. Em pequeno, lembro me muitas vezes de me emocionar também com a beleza de algumas coisas. Na maioria das vezes quando estas me traziam ideias ainda muito vagas de liberdade, justiça e fraternidade. Sentia-me ao mesmo tempo muito triste, mas ao mesmo tempo muito feliz. Acho que foi assim que comecei a perceber o que era a esperança. Ao ensinarem-me o que significava a letra, emocionei-me. Ainda não percebia bem o que era a escravatura, mas acho que fiquei feliz por perceber que a música podia libertar e mais que isso que a poesia nos podia fazer acreditar. Hoje é dia 20 de Janeiro de 2009 e volto a ouvir a mesma canção. Hoje muito mais emocionado que ontem. Emocionado também como tu por ter testemunhado um dia histórico para a humanidade mas mais por perceber que ainda continuo a emocionar-me com a fé na esperança de uma mudança para melhor. Emocionado por acreditar em todos estes clichés que muitos outros quiseram continuar a senti-los apenas como clichés. Emocionado por sentir que é possível unir-nos. É verdade que à medida que envelheço vou perdendo alguma fé, também me vou desacreditando que os outros mantenham a coragem de ser boa gente. Também vou pensando nas conspirações, congeminações, nos lobbys, nas arrogâncias e no egocentrismo dos líderes. Mesmo que me estejam a enganar, hoje, tal como os meus amigos americanos, emociono-me. Porque volto a ter Fé não no Messias, mas em que é possível viver num mundo menos liderado por babuínos. Talvez agora os preconceituosos de sempre recomecem a ter respeito pelos americanos que não quiseram viver o pesadelo em que o mundo se tornou nos últimos 8 anos. Os preconceituosos hipócritas são esses, sósias dos outros que por duas vezes optaram por fazer regredir o mundo. São esses e estes que criticam os americanos por serem os polícias do mundo mas foram esses os primeiros a exigir a sua presença em Timor. Esses que os apelidam de paladinos da destruição da cultura familiar, cultivadores do ódio nas crianças, mas aprenderam as primeiras noções de democracia, de família, de igualdade, amor, através dos filmes infantis da Disney. Esses que criticam a América pela sua ignorância em relação ao Planeta mas nem eles próprios sabem dizer mais que 10 capitais dos países pertencentes à União Europeia. Esses próprios que desconhecem quando foi a Revolução Francesa, quem é Voltaire, o que foi o Iluminismo, ou como é a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Esses, acredito, hoje são menos. Hoje alguns desses começaram a olhar de outra forma para os Estados Unidos. Corrompidos pelas amarguras ainda? Sim. À espera que tudo se torne como dantes, para confirmar confortavelmente as suas expectativas mais pessimistas? Certamente. Mas hoje talvez hoje também alguns emocionados. Talvez se esqueçam que isto é tudo marketing ou talvez hoje abandonem as teorias de que na vida não existe poesia, existem apenas manobras de engate e coros manhosos com menor ou maior Q.I., propagandas egocêntricas em lógicas de ganho, de lucro, de superação. Talvez estes também se esqueçam, pelo menos hoje, que há pessoas que se juntam, que cantam, que rezam, que se abraçam, não porque tiveram a fumar umas, não porque são casais de swinguers hippies, não porque isso lhes fará propagar as suas redes sociais, mas sim porque, cantar com um estranho, rezar com um amigo, abraçar um vizinho nos faz sentir simplesmente muito melhor. Faz-nos sentir melhor, mais bonitos e mais fortes por sabermos que temos amparo, sem pensar que bonito, forte e amparo na mesma frase são panisgas expressões. Faz-nos acreditar que quando a crise estiver mesmo aí haverá abrigo. Faz-nos acreditar que quando outros quiserem apagar um povo inteiro de um mapa (como se isso apenas fosse mais um dia de brincadeiras com o GoogleEarth e o Photoshop) outros existirão a fazer frente, a romper a inércia e a desmascarar a ganância humana. Faz-nos acreditar que quando uns quiserem assustar-nos com o terror e subjugar-nos ao medo das intifadas, acenderão outros luzes e derrubarão os entraves dos labirintos mais angustiantes. Faz-nos acreditar que é possível existirem e continuarem a ser criadas estas canções de redenção e que serão elas também a darem-nos força e paz para a construção de um mundo novo, onde mundo novo seja um conceito demagógico apenas para os que não souberem usufruir dele, seja de facto um mundo melhor do que o que inesperadamente encontrámos no final do século passado, quando nascemos.


Quando tinha 7 anos eu ia acreditar muito mais em alguém que me dissesse o que acabei de escrever neste post ou que um dia seria possível ver descendentes de escravos, líderes de poderosos impérios mundiais. Quando “um dia” se torna “hoje” emociono-me tal como tu e não sei mesmo de que muitas outras coisas se poderão emocionar aqueles que hoje não sentiram esta esperança. G.F.

amores míopes


Benedita quando não tinha óculos sentia-se nua. Acácio quando não tinha óculos sentia-se despido. Precisavam de se verem a si mesmos, ao espelho, nas montras, sempre vestidos. Em meados de Novembro de 1954 fizeram pela primeira vez amor depois de almoço, quando começou a chover e se cruzaram, na Brasileira, secando ambos as lunetas. G.F.

Um homem alto demais


O poema que se segue é dedicado ao meu amigo Tiago, conhecido na Europa por Tiago Alto e em pequenos lugares por Pai Jordas. Talvez devêssemos na vida dedicar muitos poemas às nossas namoradas e por vezes a grandes amigos que gostem de poemas. Ainda o vou ver amanhã, mais uma vez, a despedir-se pela Beato Pellegrini em direcção à sua residência, depois de mais um ensaio da nossa eterna banda. Ao longe ainda o vejo e este poema é sobre ele:


eu vi um homem alto demais para caber nas casas. era muitas vezes dobrado como um papel e posto num canto como guardado. muito tempo o vi um dia em que ficou no parque sentado. estava na relva e todas as coisas que pertenciam às árvores pareciam querer conhecê-lo. algumas crianças gritavam com ele convictas de que não as ouvia lá no cimo da sua cabeça. as coisas que pertenciam às árvores por vezes afugentavam as crianças, e um homem assim competia com elas. frutos caíam com peso no chão, mal esquivados às cabeças tontas que se assustavam. eu vi esse homem alto demais a ir embora. algures no fundo da rua virou à direita. não o pude alcançar com a minha pequena bicicleta e começou a chover. juro que ainda percebi, acima dos prédios, a sua mão esticada no ar para se proteger da água ou abrir um alçapão no céu. Valter Hugo Mãe