terça-feira, janeiro 27, 2004

Por ironia do destino, fiquei sem pc depois de um post sobre contradições, sobre problemas cardíacos. Voltei ao blog infelizmente pelas mesmas razões. Espero voltar a escrever sobre outras coisas. Depois, quando serenarmos.

1979-2004

"1979 - 2004"; "1980-2004" surgiu-nos no meio de galas e de hermans.

Vejo religiosamente a série "Six feet under", que agora o canal 2 felizmente voltou a transmitir todas as segundas-feiras, pelas 22horas, sem atrasos. Cada episódio começa com a morte de alguém terminando cada caso com imagem em fundo branco de duas simples datas. Nascimento e Morte. A vida resumida em dois ou três nomes próprios e 8 algarismos separados por um traço pequeno.

Ontem a imagem de Feher multiplicou-se nas várias aberturas dos especiais noticiosos. E percebi que nos transtorna também graficamente, a Morte.

Olharmos para 2 frios números e uma fotografia a preto e branco dando-lhes corpo gela-nos. Mais, petrifica-nos quando esses dois números se aproximam tanto das datas visuais a que estamos acostumados. Aproximam-se das nossas datas, das nossas existências tão insignificantes quando nos confontamos com a morte mas tão gloriosas quando daqui a uns dias nos esquecermos, começarmos a fazer humor sobre a tragédia, recometermos os mesmos vícios e abusos.

E se gente tem de continuar, talvez nos resta tentarmos que seja feliz e eterno esse tão pequeno hífen. G.F.

...


Escrevo este post de rajada. Sem correcções, sem recuos. Escrevo e choro. Choro porque não percebo, porque nunca vou perceber. porque estará sempre perto de mim e de nós isto que não percebemos.

Há fins de semana que se perdem em caixotes banalmente etiquetados e guardados nos confins dos armazéns da memória humana, mas também há outros dias, minutos, segundos, que nem chegam a sert empacotados são pousados nas primeiras prateleiras. Ali, prontos a serem expostos uma, outras vezes. Até sempre. Até ao fim. A Morte, as mortes dos que nos rodeiam, são algumas das etiquetas dessas memórias mais à mão. Porque se há rituais de passagem que mais nos marcam, nos tornam mais maduros, um deles é a morte de alguém que nos é querido. E a morte de alguém que nos é querido, que está na flor de idade, tem um filho de 4 anos e é nossa tia, aumenta o grito sufocado do "PORQUÊ?". Pior que isto, pensarmos que alguém que nos é querido pode morrer por nossa culpa é quase insuportável.

Há alguns anos, no meio de um jogo nocturno de guerrilha, acampado em Santa Margarida, dei uma cabeçada no Carlos, o meu sub-guia e amigo, carinhosamente apelidado de Ié-Ié. Ia a correr no meio da penumbra e sem o ver acertei-lhe directamente no face esquerda. O som do embate ainda hoje o consigo reproduzir mentalmente e os momentos depois - o ataque epiléptico, a lingua a dobrar-se, a reanimação, os olhos a revirarem-se, os gritos pelos mais velhos - tornaram-se vivos quando ontem, O Tiago e o Anderson, jogadores do glorioso, puseram as mãos à cabeça, chorando compulsivamente.

Nessa noite, enquanto o Carlos era ajudado pelos mais velhos, fui levado para a tenda e pela primeira vez rezei e chorei como nunca. Talvez tenha sentido o que o Tiago sentiu, o que milhões de homens e mulheres já sentiram nos instantes depois de um acidente grave. Incredulidade pela morte estar ali perto. Acima de tudo a impotência. O não poder fazer nada para salvar um amigo. O caminho sem volta que a merda do Tempo nunca nos traça. Nessa noite e ontem chorei e chorei.

O Carlos tinha estado a tarde toda a rir-se.Ia ser mais um acampamento de estórias futuras e banais feitas de piadas privadas. Mais um alicerçar da mística escutista em nós que vivíamos a plena adolescência.

Tinha, antes do acidente, feito uma repreensão ao Carlos por não ter cumprido as tarefas de campo. Tinha dito ao meu pai, minutos antes, que o Feher não era grande jogador, falhava muito.

Pouco depois eu estava ali ao lado do Carlos, numa aflição que nunca tive. Pouco depois, um aglomerado de jogadores de branco e vermelho a chorarem e a abraçarem-se. A esperança, a puta da esperança que nunca morre, fica sempre para o fim. A ilusão de que ela existe, que podemos ter o controlo.

O Ié-Ié voltou passado 5 horas do hospital e abraçamo-nos. O meu coração serenou.
Ontem, o Feher não voltou para os seus companheiros de tantos jogos e estórias de cumplicidade. Colegas da sua idade. Ídolos, que me fazem amar o Benfica mais que muitas coisas na vida. Jovens onde todos os domingos pusam olhares pressionantes de milhões de anónimos juízes do seu trabalho.

Não voltou a abraçar os seus amigos. Não voltou para se deixar abraçar como o Carlos. Morreu-nos em directo com 24 anos. Sorria ironicamente. Como a vida nos faz: seduzindo-nos até que nos deixa. G.F.

terça-feira, janeiro 13, 2004

Em casa de Ferreiro... é mesmo melhor ter alguma coisa de ferro.

Um vizinho meu é dentista, tens os dentes completamente amarelos. Ontem fui a uma loja da “Swatch” e perguntei à rapariga simpática da loja que horas eram. Não tinha relógio. Conheço quem tenha mães enfermeiras e nem um único Brufen existe em suas casas. Os que pior se vestem, de entre aqueles que nos inundam todos os dias os ecrãs dos nossos televisores, são na maioria das vezes os estilistas. Há dois meses, em Verona, houve uma inundação num quartel dos bombeiros locais, devido a uma negligente torneira aberta. Conhecem-se vários casos de ex-psiquiatras agora internados. Não conheço nenhum ferreiro nem sei se nas suas casas predominam espetos de pau mas tenho de concordar com Balzac: distingue-nos a contradição. E a estória que vou contar, traz-nos apenas um dos infinitos paradoxos das nossas belas vidas quotidianas.

Uma considerável parte dos médicos fuma. Uma considerável parte dos médicos alimenta-se mal. Uma considerável parte dos médicos bebe em demasia. Uma considerável parte dos médicos não faz desporto. Pois façamos o que um médico diz, não façamos o que ele faz…

Contou o meu pai que, nas terras de França, um homem nada parco em finanças tinha ganho a maior lotaria do país naquele ano. Esse homem, apesar de rico, albergava imensas dívidas e já tinha tido duas ameaças graves de problemas vasculares devido a preocupações monetárias. O prémio era exorbitante, cerca de 250 mil contos, e os familiares desse homem souberam da notícia primeiro que o premiado. Decidiram então chamar o mais eminente cardiologista da cidade dando-lhe a missão de dar tão surpreendente notícia ao patriarca estimado. Com uma pequena desculpa, levou-se o tal homem a uma consulta fantasma. O médico e o premiado sem o saber falaram durante quase quatro horas. Tudo num clima de relaxamento e de paz imensa. Todas as técnicas foram aplicadas. O médico, na mais cândida serenidade, conseguiu que o diálogo enveredasse pelo caminho desejado. Reflectiam então sobre prémios, sobre sortes e azares na vida, quando, sem dar muito nas vistas, o médico perguntou ao homem abraçado pelo destino o que faria se ganhasse a Lotaria nesse ano. Durante três segundos, o silêncio. Depois, a resposta suave: «Por todas as vezes que não me deixou ir desta para melhor, por ter salvo mais que uma vez a minha vida, dava-lhe, sem sombra de dúvida, metade de toda a minha fortuna». O médico teve um ataque cardíaco, falecendo naquele instante. G.F.

Terra

Se existiu um Povo que mereceu a Terra onde habitou foi única e exclusivamente o povo nativo norte - americano. Deixaram-nos, entre milhares de heranças destruídas por cowboys que ainda hoje aplicam as suas Leis, estas como tantas outras palavras sábias:


«Trata a Terra bem: não te foi herdada dos teus pais, foi-te emprestada pelos teus filhos.» Antigo Provérbio Cochise

domingo, janeiro 11, 2004

Velhas são as trapas.

Acabo de chegar de uma viagem de comboio bem sorridente. Três velhotas de aproximadamente 70 anos, conseguiram em 20 minutos falar de tudo. Lexotan, drogas, juventudes perdidas, mulheres fáceis, padres injustiçadamente atraentes, respeito, vidas perdidas, afectos. Imaginei-me a falar mais com a minha avó que, como estas senhoras tão simpáticas e afáveis, não sente que os tempos que agora vivemos surgem como piores que os tempos dela, são apenas diferentes. Desejaram-me, quando sairam na paragem antes da minha « Sorte e saúde jovem.» Sorri e julguei-me novo, diria mesmo ainda adolescente pois a frase que me ficou na cabeça o caminho todo, desde a estação até casa, foi a da senhora de cabelo mais grisalho: «Abaixo da cintura ninguém é honesto». Quem disse que não se aprende com os mais velhos, morrerá ignorante. G.F.

sexta-feira, janeiro 09, 2004

Vergílio Ferreira, Manhã Submersa

«...Por isso nesta hora nua em que escrevo, perdido no rumor distante da cidade, conforta-me pensar não sei em que apelo invencível de vida e de harmonia que não morreu desde as raízes da noite que me cobriu.»

Évora, 8 de Março de 1953
Ani Di Franco, Tom Waits, Mercury Rev, Kinobe, Muse, Kelly Joe Phelpes, Dispatch, Maria Rita e sempre Pearl Jam, obrigado pelas pegadas feitas de notas e silêncios na caminhada desta noite onde segui acompanhado pela vossa "estranha tribo".


Strangest Tribe

It's five below in evidence.
The winded eves and sideways snow.
His eminence has yet to show.

Follow the ageless tide.
Follow the angled light.
Follow the strangest tribe.
I... I... I...

It's 6:00 AM. You're waiting for...
You've had your feast. You're wanting more.

Follow the wayward mile.
Follow the distant high.
Follow the strangest tribe.
I... I... I...

Follow the ancient stripe.
Follow the angels try.
Follow the strangest tribe.
I... I... I...


Gossard, 1999


2004, este ano é que vai ser.

Já 2003 não é. Agora restam as cinzas de um passado que, depois de pesado, exprimido, introspeccionado, desrecalcado e avaliado foi sem dúvida mau. A todos os níveis, intra, inter, nacional ou pessoal. Essas cinzas acabam sempre por pousar dois ou três dias antes do ano findar. O final de Dezembro surge-me como uma página prestes a quebrar. A última linha a aproveitar. O último ponto antes do próximo parágrafo. A passagem para uma nova imensidão rectangular vazia de luz, linhas e tinta. O branco do papel, o antever de um amanhã melhor, os esquiços de projectos tocados com os mesmos acordes mas em posições diferentes. Novos sonhos ou velhas rotas mascaradas por traçar?

Sempre me agradaram os anos bissextos. Sempre me agradaram os dias que roubei aos ontens que não vivi. Relembro agora outros ontens, os que inconscientemente não se tornaram passado granítico. As passagens, os reencontros com as expressões acolhedoras de todos os dias. Dos sorrisos dos colegas que nunca esquecemos, dos pedaços de madeira, plástico, betão, vidro, da arte vulgar que fomos embutindo em nós mesmos. Voltamos aos lugares que são todos, aos odores democráticos, aos cadernos mal apontados. E as vozes, as vozes que já são bandas sonoras da nossa existência diária. A delas, a deles, a do senhor do bar, à dos refrões da rádio, a “voz off” do metro que diz “Intrecampos”, a tosse dos estranhos, as gargalhadas, a chuva triste, solitária mas necessária. Voltamos, com a sensação que vimos lavados embora a sujidade sempre a transportaremos, até nos tornarmos simplesmente nela. Até nos tornarmos em pó, no nosso derradeiro reveillon.

Hoje existe 2004, já depois dos Magos, das prendas consumidas, das noites que se beberam em excesso na companhia de amigos de sempre. Agora há esperança mesmo depois de derrotas com os vizinhos. Porque ainda estamos no início e sempre nos foi impossível aceitar que as coisas podem claudicar logo no princípio. Estamos a pouco tempo de vestirmos os mesmos hábitos de sempre, de nos acomodarmos. Ao Inverno, aos outros, ao ócio, ao prazer de pensar que só faltam 6 horas para acabar o trabalho, 6 dias para o sábado, 6 meses para o Verão. Caminharemos abruptamente para um prazer que está sempre depois da última duna. Sabemos que é uma miragem mas acabaremos por ter de acreditar nela. Acabaremos por desistir de alguma coisa, de cruzarmos os braços enquanto decidimos que vamos salvar o mundo entre uma bica e 2 cigarros. Só que antes de salvar o mundo é preciso guardarmo-nos. È preciso salvar riscos, guardar ficheiros, fazer malas, planear itinerários, delinear, poupar, assegurar. E quando for nova passagem acabaremos por dar uma olhadela no espelho e repetir numa confidência, é este ano, é este ano, tem de ser este ano… Não quero para mim nem para vocês a mesma repetição. Sonhemos que daqui a menos de 12 meses possamos dizer com satisfação e um brilhozinho nos olhos: Este ano é que foi. G.F.

Olha a bola, Manel.

Pergunto-me se algum psicólogo, psiquiatra, médico, bruxo, professor Karamba, deputado, Felícia Cabrito, já terá investigado um escândalo que pode ter traumatizado toda uma geração. Falo das músicas infantis que todos ouvimos quando éramos petizes. Ok, « são letras para os miúdos eles, não percebem, cantam por cantar». Mas isto é tudo uma cabala dos que tentaram por à rasca todos os que tivemos a sorte ou o azar de ter nascido na década de 80. Eu sofri, e penso não ter sido o único. Sei que o facto da mãe do Marco ter morrido ou ter fugido para a Argentina marcou traumaticamente muita criançada mas o meu caso é mais perturbador. Tem a ver com uma bola e com um infanto suicida chamado Manel.

Lembro-me daquele fatídico dia em que comprei uma bola de basquet no Centro Comercial Fonte Nova. Não era uma bola oficial mas oficiosamente eu nesse dia já era o Magic Johnson ou o Larry Bird. Nem bater a bola sabia, e talvez por isso a deixei que ma roubassem enquanto olhava para uma montra com gelados. No mesmo dia, a primeira bola de basquet, o primeiro roubo, a primeira grande injustiça. Lembro-me de ter berrado ao colo da minha mãe, chorado, libertado todo o verde das minhas entranhas. Fiquei sem algo que nunca tinha tido e sempre desejado, uma bola. Era por demais injusto. Voltei para casa desconsolado e eis que o drama, a tragédia se adensa… A minha mãe põe uma cassete “Portugal dos Pequeninos” para me animar. E a primeira música, “Olha a bola Manel”…

Não sei se me está a ler caro Reitor, José Barata Moura, mas e letra que escreveu transformou num inferno uma das piores tardes da minha vida. Ouvir 10 ou 15 vezes um refrão «Olha a bola Manel/olha a bola Manel/nunca mais ninguém a viu/olha a bola Manel, foi-se embora fugiu» e o final «O Manel tinha uma bola/mas agora não tem não/E a gente a ver se o consola/vai cantar esta canção » é de um sadismo exacerbado. E ali ficam a cantar tristemente para o Manel, dizendo-lhe que olhe a bola que está a fugir, que está a partir, qual Leonardo Di Caprio congelado a beira de um Titanic. Ao menos a canção não é cantada em tom de escárnio, aí sim, ter-me-ia estrangulado com o fio do pião.
Mas e se por acaso eu tivesse comprado um balão enchido com hélio e o tivesse largado? Acho que a todos os putos já aconteceu isso. A mim sim, inúmeras vezes. Porém tive a sorte de ter chegado a casa e ouvir novamente o “Olha a Bola Manel” e reconfortar-me com a desgraça dos outros. Porque se tivesse ouvido «O balão do João/sobe sobe pelo ar/fica então o João a choramingar» hoje estaria internado.

Quantos Maneis e Joões haverão por esse país fora, vítimas de meia dúzia de autores perversos. Não me venham dizer que as letras infantis são de todo moralistas e educativas. Eu acho que ninguém anda a atirar paus a gatos até eles morrerem. Ninguém acha seguro um puto sentar-se numa chaminé e chorar e gritar com a picada da merda de uma pulguita. Não andam, que eu saiba, miúdos a fazer rodas com machadinhas na mão a gritar “quem te pôs a mão”? Pronto, eu perdi a inocência, é verdade, mas qualquer puto de 6, 7 anos já tem maturidade para se entristecer com um papagaio de bico amarelo que faz xixi na cama e como castigo é espancado com um chinelo ou se realmente partir uma cantarinha quando for à fonte vai ter de se por de joelhos e pedir que a mãe não a espanque por ser pequenina. Há ainda a Linda Falua em que obrigatoriamente a mãe tem de se separar dos filhos. Se não for ela a ficar com o Senhor Barqueiro (que raio de metáfora subversiva será esta?) tem de deixar um dos filhos, ainda por cima o último, por não os poder sustentar.

Quem são os loucos, os mafiosos, os pervertidos, sádicos, diria mesmo os monstros que pensaram que as crianças não sentem as letras que cantam? A S.P.A. saberá disto? Espero que a justiça seja feita e tu Manel, espero que um dia possas dar ao teu filho a bola que não pudeste ter. G.F.