Já 2003 não é. Agora restam as cinzas de um passado que, depois de pesado, exprimido, introspeccionado, desrecalcado e avaliado foi sem dúvida mau. A todos os níveis, intra, inter, nacional ou pessoal. Essas cinzas acabam sempre por pousar dois ou três dias antes do ano findar. O final de Dezembro surge-me como uma página prestes a quebrar. A última linha a aproveitar. O último ponto antes do próximo parágrafo. A passagem para uma nova imensidão rectangular vazia de luz, linhas e tinta. O branco do papel, o antever de um amanhã melhor, os esquiços de projectos tocados com os mesmos acordes mas em posições diferentes. Novos sonhos ou velhas rotas mascaradas por traçar?
Sempre me agradaram os anos bissextos. Sempre me agradaram os dias que roubei aos ontens que não vivi. Relembro agora outros ontens, os que inconscientemente não se tornaram passado granítico. As passagens, os reencontros com as expressões acolhedoras de todos os dias. Dos sorrisos dos colegas que nunca esquecemos, dos pedaços de madeira, plástico, betão, vidro, da arte vulgar que fomos embutindo em nós mesmos. Voltamos aos lugares que são todos, aos odores democráticos, aos cadernos mal apontados. E as vozes, as vozes que já são bandas sonoras da nossa existência diária. A delas, a deles, a do senhor do bar, à dos refrões da rádio, a “voz off” do metro que diz “Intrecampos”, a tosse dos estranhos, as gargalhadas, a chuva triste, solitária mas necessária. Voltamos, com a sensação que vimos lavados embora a sujidade sempre a transportaremos, até nos tornarmos simplesmente nela. Até nos tornarmos em pó, no nosso derradeiro reveillon.
Hoje existe 2004, já depois dos Magos, das prendas consumidas, das noites que se beberam em excesso na companhia de amigos de sempre. Agora há esperança mesmo depois de derrotas com os vizinhos. Porque ainda estamos no início e sempre nos foi impossível aceitar que as coisas podem claudicar logo no princípio. Estamos a pouco tempo de vestirmos os mesmos hábitos de sempre, de nos acomodarmos. Ao Inverno, aos outros, ao ócio, ao prazer de pensar que só faltam 6 horas para acabar o trabalho, 6 dias para o sábado, 6 meses para o Verão. Caminharemos abruptamente para um prazer que está sempre depois da última duna. Sabemos que é uma miragem mas acabaremos por ter de acreditar nela. Acabaremos por desistir de alguma coisa, de cruzarmos os braços enquanto decidimos que vamos salvar o mundo entre uma bica e 2 cigarros. Só que antes de salvar o mundo é preciso guardarmo-nos. È preciso salvar riscos, guardar ficheiros, fazer malas, planear itinerários, delinear, poupar, assegurar. E quando for nova passagem acabaremos por dar uma olhadela no espelho e repetir numa confidência, é este ano, é este ano, tem de ser este ano… Não quero para mim nem para vocês a mesma repetição. Sonhemos que daqui a menos de 12 meses possamos dizer com satisfação e um brilhozinho nos olhos: Este ano é que foi. G.F.
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