terça-feira, janeiro 27, 2004

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Escrevo este post de rajada. Sem correcções, sem recuos. Escrevo e choro. Choro porque não percebo, porque nunca vou perceber. porque estará sempre perto de mim e de nós isto que não percebemos.

Há fins de semana que se perdem em caixotes banalmente etiquetados e guardados nos confins dos armazéns da memória humana, mas também há outros dias, minutos, segundos, que nem chegam a sert empacotados são pousados nas primeiras prateleiras. Ali, prontos a serem expostos uma, outras vezes. Até sempre. Até ao fim. A Morte, as mortes dos que nos rodeiam, são algumas das etiquetas dessas memórias mais à mão. Porque se há rituais de passagem que mais nos marcam, nos tornam mais maduros, um deles é a morte de alguém que nos é querido. E a morte de alguém que nos é querido, que está na flor de idade, tem um filho de 4 anos e é nossa tia, aumenta o grito sufocado do "PORQUÊ?". Pior que isto, pensarmos que alguém que nos é querido pode morrer por nossa culpa é quase insuportável.

Há alguns anos, no meio de um jogo nocturno de guerrilha, acampado em Santa Margarida, dei uma cabeçada no Carlos, o meu sub-guia e amigo, carinhosamente apelidado de Ié-Ié. Ia a correr no meio da penumbra e sem o ver acertei-lhe directamente no face esquerda. O som do embate ainda hoje o consigo reproduzir mentalmente e os momentos depois - o ataque epiléptico, a lingua a dobrar-se, a reanimação, os olhos a revirarem-se, os gritos pelos mais velhos - tornaram-se vivos quando ontem, O Tiago e o Anderson, jogadores do glorioso, puseram as mãos à cabeça, chorando compulsivamente.

Nessa noite, enquanto o Carlos era ajudado pelos mais velhos, fui levado para a tenda e pela primeira vez rezei e chorei como nunca. Talvez tenha sentido o que o Tiago sentiu, o que milhões de homens e mulheres já sentiram nos instantes depois de um acidente grave. Incredulidade pela morte estar ali perto. Acima de tudo a impotência. O não poder fazer nada para salvar um amigo. O caminho sem volta que a merda do Tempo nunca nos traça. Nessa noite e ontem chorei e chorei.

O Carlos tinha estado a tarde toda a rir-se.Ia ser mais um acampamento de estórias futuras e banais feitas de piadas privadas. Mais um alicerçar da mística escutista em nós que vivíamos a plena adolescência.

Tinha, antes do acidente, feito uma repreensão ao Carlos por não ter cumprido as tarefas de campo. Tinha dito ao meu pai, minutos antes, que o Feher não era grande jogador, falhava muito.

Pouco depois eu estava ali ao lado do Carlos, numa aflição que nunca tive. Pouco depois, um aglomerado de jogadores de branco e vermelho a chorarem e a abraçarem-se. A esperança, a puta da esperança que nunca morre, fica sempre para o fim. A ilusão de que ela existe, que podemos ter o controlo.

O Ié-Ié voltou passado 5 horas do hospital e abraçamo-nos. O meu coração serenou.
Ontem, o Feher não voltou para os seus companheiros de tantos jogos e estórias de cumplicidade. Colegas da sua idade. Ídolos, que me fazem amar o Benfica mais que muitas coisas na vida. Jovens onde todos os domingos pusam olhares pressionantes de milhões de anónimos juízes do seu trabalho.

Não voltou a abraçar os seus amigos. Não voltou para se deixar abraçar como o Carlos. Morreu-nos em directo com 24 anos. Sorria ironicamente. Como a vida nos faz: seduzindo-nos até que nos deixa. G.F.

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