…respostas, críticas, crónicas, verdades infundadas, teorias, encontros, paródias, conspirações, chalaças, ramboiadas, lágrimas, venenos, gentes, vícios, valores, palavras, perguntas, solidões, comunhões, fobias, frenias, neopatologias, actualidades, mundialidades, portugalidades. Ou só insignificâncias…
sábado, janeiro 24, 2009
rasteira
Ontem rasteirei-te à saída do colégio. Tinhas o cabelo menos curto e eu tinha as tardes mais longas para poder jogar aos apurados na clareira que diziam lembrar o Barnabéu. Eu aperfeiçoava técnicas para te conseguir estatelada no chão e tu apuravas milhares de predicados e complementos indirectos com as tuas Polly Pockets. Não sabia o que eram recibos verdes, quanto custava o barril de petróleo ou que o meu pai podia um dia tornar-se velho. Nas noites de viagens na penumbra, não havia bairros, nem álcool, nem dilemas. O caminho para eu poder estar confortavelmente satisfeito era traçado a saquetas de cromos dos Caça-Fantasmas e ao facto de esperar que, no dia em que fosse novamente chefe de turma, entregar o teu dossier depois dos outros todos e deixar-te lá dentro um tosco desenho feito a a canetas de filtro Molin. Então viajava contigo por todos os países que o Eládio no canal 2 me falava e tornava-me no herói mais forte, mais bonito e mais adorado do Planeta e tu mais fantástica que todas as raparigas da nossa idade. Até quase da Ariel, a Pequena Sereia. Depois eu adormecia e, na manhã seguinte o meu despertador ainda era a minha mãe. Eu gostava de ti mas gostava muito mais dos apurados e do Brinca Brincando. Por isso, tanto me fazia que já não fosse a única pessoa a quem pedias o 5 no bate pé. Só que naquele dia tu estavas tão bonita que tinha mesmo de te rasteirar à saída do colégio. Não te aleijaste, o que prova a ineficácia das minhas rasteiras. Sorriste, chamaste-me parvo e perguntaste se eu queria uma pastilha gorila de banana ou morango. Eu escolhi morango e ficámos a tarde toda a rebentar balões peganhosos na cara um do outro. Mereceste e bem a rasteira que te fiz ontem à saída do colégio. G.F.
sexta-feira, janeiro 23, 2009
fissuras
Nove minutos antes da maré encher totalmente subiram ao palco escuro. Procuraram ao longo da vida o silêncio e ali, quando o encontraram, a primeira coisa de que se lembraram foi de contar cometas. Depois fartaram-se, preferiram ouvir-se, beijar e gritar. Enunciaram o seu único manifesto de amor e empacotaram a megadrive, os cortinados, o ipod, os postais de Lubliana, o tapete, a máquina de fazer pipocas e o crucifixo. Optaram pelo Regional e só pararam perto de Vila Flor. Rodaram as chaves de casa. Duas vezes: e se roda duas vezes não está ninguém. Não estava. A maré já esvaziara e havia mais vontade, mais fome de se perderem nas roldanas do corpo um do outro, encontrando o amor de nenhum Deus além do seu orgasmo. De manhã um caos calmo depois do apostolado da carne e do prazer da entrega. Olharam-se um no outro, no escuro, no outro palco. Outra vez menos virgem, Maria adormecia no quarto crescente de Mohamed. Absolutamente diferentes sem precisarem de partir. Sol poente como no filme da tarde de domingo passado. Loiça do IKEA por lavar. Absolutamente diferentes sem precisarem de ficar. Pequenas imperfeições em cada um. Os sinos tocaram nas mesquitas e casaram-se, quando ao longe megafones lhes pregavam sarilhos. Encontraram-se nas lacunas um do outro. Um minuto depois da maré voltar a encher sabiam que tudo tem rasgos, fissuras. É exactamente por aí que a luz surge.G.F.
(ao Patriarca)
fuga (em balão)
Sovietes partem de balão foragidos, atalhando os céus que espelham o Barents. Sem Deus, com apenas a sua Cor, enfadados, dançam para esquecer o frio e relembrar a Mãe. Içam ainda rubras bandeiras. Queimam Gorbatchevs de 2x2, cantam internacionais. Há fome. Um esconde dos outros assassinatos em massa, outro acorda intermitentemente em arquipélagos de gelo siberianos, um último atira-se depois do último shot de vodka. Há estéril festa rija no balão desamparado sem destino. Todos iguais e acabados. Poucos esperam ser mais que foragidos. Diz-se que um, sorrindo, rezou pela primeira vez e chorou.
Executivos partem de balão foragidos, atalhando os céus que espelham o Beufort. Sem Dólares, com apenas o seu corpo, enfadados, dançam para esquecer o frio e relembrar a Bolsa. Içam ainda taças douradas. Queimam Che Guevaras de 2x2, cantam Sinatra. Há fome. Todos escondem de um que o vão comer cru, outro acorda intermitentemente em pangeias de bairros suburbanos dos avós, um último atira-se depois do último shot de vodka. Há rija festa estéril no balão desamparado sem destino. Todos diferentes e acabados. Todos esperam ser os melhores foragidos. Diz-se que um, chorando, rezou pela primeira vez e sorriu. G.F.
Guaranteed
On bended knee is no way to be free
Lifting up an empty cup, I ask silently
All my destinations will accept the one that's me
So I can breathe...
Circles they grow and they swallow people whole
Half their lives they say goodnight to wives they'll never know
A mind full of questions, and a teacher in my soul
And so it goes...
Don't come closer or I'll have to go
Holding me like gravity are places that pull
If ever there was someone to keep me at home It would be you...
Everyone I come across, in cages they bought
They think of me and my wandering, but I'm never what they thought
I've got my indignation, but I'm pure in all my thoughts I'm alive...
Wind in my hair, I feel part of everywhere
Underneath my being is a road that disappeared
Late at night I hear the trees, they're singing with the dead Overhead...
Leave it to me as I find a way to be
Consider me a satellite, forever orbiting
I knew all the rules, but the rules did not know me
Guaranteed.
Eddie Vedder, Into The Wild, 2007
L.A.P.D. e N.Y.P.D. VS GNR
Confunde-me a ineficácia e incompetência dos departamentos da Policia de Los Angeles e New York. Porque é que quando são preciso reforços, vão 2 agentes em cada carro, chegando a verificar-se um tráfego do arco da velha nas ruas limítrofes aos bancos reféns e inclusive pequenos acidentes ao estacionarem todos ao mesmo tempo? Até a GNR tem carrinhas e minibuses de intervenção. G.F.
grace
Quando tinha 7 anos aprendi a canção “Amazing Grace”. Em pequeno, lembro me muitas vezes de me emocionar também com a beleza de algumas coisas. Na maioria das vezes quando estas me traziam ideias ainda muito vagas de liberdade, justiça e fraternidade. Sentia-me ao mesmo tempo muito triste, mas ao mesmo tempo muito feliz. Acho que foi assim que comecei a perceber o que era a esperança. Ao ensinarem-me o que significava a letra, emocionei-me. Ainda não percebia bem o que era a escravatura, mas acho que fiquei feliz por perceber que a música podia libertar e mais que isso que a poesia nos podia fazer acreditar. Hoje é dia 20 de Janeiro de 2009 e volto a ouvir a mesma canção. Hoje muito mais emocionado que ontem. Emocionado também como tu por ter testemunhado um dia histórico para a humanidade mas mais por perceber que ainda continuo a emocionar-me com a fé na esperança de uma mudança para melhor. Emocionado por acreditar em todos estes clichés que muitos outros quiseram continuar a senti-los apenas como clichés. Emocionado por sentir que é possível unir-nos. É verdade que à medida que envelheço vou perdendo alguma fé, também me vou desacreditando que os outros mantenham a coragem de ser boa gente. Também vou pensando nas conspirações, congeminações, nos lobbys, nas arrogâncias e no egocentrismo dos líderes. Mesmo que me estejam a enganar, hoje, tal como os meus amigos americanos, emociono-me. Porque volto a ter Fé não no Messias, mas em que é possível viver num mundo menos liderado por babuínos. Talvez agora os preconceituosos de sempre recomecem a ter respeito pelos americanos que não quiseram viver o pesadelo em que o mundo se tornou nos últimos 8 anos. Os preconceituosos hipócritas são esses, sósias dos outros que por duas vezes optaram por fazer regredir o mundo. São esses e estes que criticam os americanos por serem os polícias do mundo mas foram esses os primeiros a exigir a sua presença em Timor. Esses que os apelidam de paladinos da destruição da cultura familiar, cultivadores do ódio nas crianças, mas aprenderam as primeiras noções de democracia, de família, de igualdade, amor, através dos filmes infantis da Disney. Esses que criticam a América pela sua ignorância em relação ao Planeta mas nem eles próprios sabem dizer mais que 10 capitais dos países pertencentes à União Europeia. Esses próprios que desconhecem quando foi a Revolução Francesa, quem é Voltaire, o que foi o Iluminismo, ou como é a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Esses, acredito, hoje são menos. Hoje alguns desses começaram a olhar de outra forma para os Estados Unidos. Corrompidos pelas amarguras ainda? Sim. À espera que tudo se torne como dantes, para confirmar confortavelmente as suas expectativas mais pessimistas? Certamente. Mas hoje talvez hoje também alguns emocionados. Talvez se esqueçam que isto é tudo marketing ou talvez hoje abandonem as teorias de que na vida não existe poesia, existem apenas manobras de engate e coros manhosos com menor ou maior Q.I., propagandas egocêntricas em lógicas de ganho, de lucro, de superação. Talvez estes também se esqueçam, pelo menos hoje, que há pessoas que se juntam, que cantam, que rezam, que se abraçam, não porque tiveram a fumar umas, não porque são casais de swinguers hippies, não porque isso lhes fará propagar as suas redes sociais, mas sim porque, cantar com um estranho, rezar com um amigo, abraçar um vizinho nos faz sentir simplesmente muito melhor. Faz-nos sentir melhor, mais bonitos e mais fortes por sabermos que temos amparo, sem pensar que bonito, forte e amparo na mesma frase são panisgas expressões. Faz-nos acreditar que quando a crise estiver mesmo aí haverá abrigo. Faz-nos acreditar que quando outros quiserem apagar um povo inteiro de um mapa (como se isso apenas fosse mais um dia de brincadeiras com o GoogleEarth e o Photoshop) outros existirão a fazer frente, a romper a inércia e a desmascarar a ganância humana. Faz-nos acreditar que quando uns quiserem assustar-nos com o terror e subjugar-nos ao medo das intifadas, acenderão outros luzes e derrubarão os entraves dos labirintos mais angustiantes. Faz-nos acreditar que é possível existirem e continuarem a ser criadas estas canções de redenção e que serão elas também a darem-nos força e paz para a construção de um mundo novo, onde mundo novo seja um conceito demagógico apenas para os que não souberem usufruir dele, seja de facto um mundo melhor do que o que inesperadamente encontrámos no final do século passado, quando nascemos.
Quando tinha 7 anos eu ia acreditar muito mais em alguém que me dissesse o que acabei de escrever neste post ou que um dia seria possível ver descendentes de escravos, líderes de poderosos impérios mundiais. Quando “um dia” se torna “hoje” emociono-me tal como tu e não sei mesmo de que muitas outras coisas se poderão emocionar aqueles que hoje não sentiram esta esperança. G.F.
amores míopes
Benedita quando não tinha óculos sentia-se nua. Acácio quando não tinha óculos sentia-se despido. Precisavam de se verem a si mesmos, ao espelho, nas montras, sempre vestidos. Em meados de Novembro de 1954 fizeram pela primeira vez amor depois de almoço, quando começou a chover e se cruzaram, na Brasileira, secando ambos as lunetas. G.F.
Um homem alto demais
O poema que se segue é dedicado ao meu amigo Tiago, conhecido na Europa por Tiago Alto e em pequenos lugares por Pai Jordas. Talvez devêssemos na vida dedicar muitos poemas às nossas namoradas e por vezes a grandes amigos que gostem de poemas. Ainda o vou ver amanhã, mais uma vez, a despedir-se pela Beato Pellegrini em direcção à sua residência, depois de mais um ensaio da nossa eterna banda. Ao longe ainda o vejo e este poema é sobre ele:
eu vi um homem alto demais para caber nas casas. era muitas vezes dobrado como um papel e posto num canto como guardado. muito tempo o vi um dia em que ficou no parque sentado. estava na relva e todas as coisas que pertenciam às árvores pareciam querer conhecê-lo. algumas crianças gritavam com ele convictas de que não as ouvia lá no cimo da sua cabeça. as coisas que pertenciam às árvores por vezes afugentavam as crianças, e um homem assim competia com elas. frutos caíam com peso no chão, mal esquivados às cabeças tontas que se assustavam. eu vi esse homem alto demais a ir embora. algures no fundo da rua virou à direita. não o pude alcançar com a minha pequena bicicleta e começou a chover. juro que ainda percebi, acima dos prédios, a sua mão esticada no ar para se proteger da água ou abrir um alçapão no céu. Valter Hugo Mãe
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