sexta-feira, janeiro 23, 2009

fissuras




Nove minutos antes da maré encher totalmente subiram ao palco escuro. Procuraram ao longo da vida o silêncio e ali, quando o encontraram, a primeira coisa de que se lembraram foi de contar cometas. Depois fartaram-se, preferiram ouvir-se, beijar e gritar. Enunciaram o seu único manifesto de amor e empacotaram a megadrive, os cortinados, o ipod, os postais de Lubliana, o tapete, a máquina de fazer pipocas e o crucifixo. Optaram pelo Regional e só pararam perto de Vila Flor. Rodaram as chaves de casa. Duas vezes: e se roda duas vezes não está ninguém. Não estava. A maré já esvaziara e havia mais vontade, mais fome de se perderem nas roldanas do corpo um do outro, encontrando o amor de nenhum Deus além do seu orgasmo. De manhã um caos calmo depois do apostolado da carne e do prazer da entrega. Olharam-se um no outro, no escuro, no outro palco. Outra vez menos virgem, Maria adormecia no quarto crescente de Mohamed. Absolutamente diferentes sem precisarem de partir. Sol poente como no filme da tarde de domingo passado. Loiça do IKEA por lavar. Absolutamente diferentes sem precisarem de ficar. Pequenas imperfeições em cada um. Os sinos tocaram nas mesquitas e casaram-se, quando ao longe megafones lhes pregavam sarilhos. Encontraram-se nas lacunas um do outro. Um minuto depois da maré voltar a encher sabiam que tudo tem rasgos, fissuras. É exactamente por aí que a luz surge.
G.F.

(ao Patriarca)

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