sábado, agosto 04, 2007

wake up


Acordem.

Acordem, atem-nos os atacadores e façam-nos cair. Bombardeiem-nos com balões de água em largas doses de pneumonia. Façam-nos tropeçar e alegremente riam-se de nós. Soltem esbaforidas gargalhadas cruéis e apontem-nos os dedos.

Acordem e atirem-se à lama. Antes do deleito nos charcos, certifiquem-se que esbanjam o detergente fora para nós ficarmos mesmo lixados. Aproveitem e peguem em jornais antigos, roubem-lhes o conteúdo e troquem-no pelo recheio do jornal de hoje. Deixem só a primeira página. È que às tantas nem nos vamos aperceber que está tudo igual.

Acordem, chorem e gritem. Esperneiem e rebolem pelo chão. Queiram ter tudo e queiram sonhar com tudo. Exijam tudo.

Acordem e corram até perto dos precipícios só para nos pregar cagaços. Peguem nos lápis de cera e destruam tudo o que for branco. Tudo o que é branco exige riscos de amor. Risquem tudo e apaixonem-se pela tinta. Ou odeiem os baldes de tinta, ponham fulminantes e bombinhas lá dentro. Pulem e gritem no caos que acabaram de produzir.

Acordem e vão roubar as maçãs. Não as comam, atirem-nas, principalmente à cara dos vizinhos que vos costumam furar as bolas de futebol. Aproveitem e invadam os nossos teatros que vocês não conseguem perceber e belicamente dizimem os encenadores com maçãs e tomates. Quanto mais podres melhor. Quanto mais sujos e mais acordados melhor. Invadam as nossas lojas de gomas. Pilhem todas as gomas em gigantescos carrinhos de mão. Comam todas as gomas. Distribuam gomas por todos nós, deixem aquelas que sabem a cocó para os vizinhos que costumam furar as bolas de futebol. Enfardem-se de gomas até se engasgarem. Até vomitar. Depois ponham o vomitado no microscópio e maravilhem-se com a beleza do universo. De caminho abram os nossos microondas. Todos os insectos que conseguirem apanhar em 2 horas despejem-nos ai dentro. Programem para meia hora e assistam ao holocausto em directo.

Acordem e rejubilem-se por poderem fazer tudo o que quiserem. Dispam as desculpas. Vão todos nus para a praia e provem a areia até que sejam conduzidos por nós ao hospital velozmente na melhor ambulância de sempre. No hospital aproveitem tudo o que for de borla e recebam presentes. Tentem ir várias vezes parar ao hospital para que nós vos demos presentes. O natal e o aniversário não chegam porque vocês já terminaram todos os níveis e todas as colecções.

Acordem e precisem de mais coisas simples. Cantem bué até à afonia. Cantem porque afinal vossos corpos nunca vão envelhecer e as vossas rugas serão apenas preocupações para os que ainda no meio de nós estiverem a dormir. Lembrem-se que pelo menos nos espelhos vocês vão ter sempre ranho no nariz. Isso, nunca se assoem, façam competições de quem é mais ranhoso.

Acordem e façam com que todas as raparigas e rapazes se odeiem. Ódios viscerais que antes do primeiro beijo se tornarão em amores eternos. Não tenham medo de odiar. Peguem nas nossas bicicletas e pedalem revoltando-se. Se não souberem andar não faz mal, ponham rodinhas. Venham todos despenteados e fujam daí, fujam de nós, sem capacetes, sem joalheiras. Ninguém passará do chão e depois vai ser fixe rebentar as crostas só para sentir mais um bocadinho a dor.

Acordem, peguem e toda a roupa que tiverem e enviem para os que têm frio. Depois façam xixi nas gavetas vazias: é a única forma de perceber Física.

Acordem e brinquem com a pilinha e com o pipi. Com o vosso e com o dos outros. Brinquem enquanto não for preciso procurar respostas.

Acordem e procurem todos nós gordos e estigmatizados que encontrarem e chamem-nos de Badochas. Cus de Bomba, Monte de Banhas, Zarolhos, Coxos, Caixas de Óculos, Barrotes Queimados, Gigantones, JoõesCagalhões. Inventem ofensas e depois quando eles vos espancarem saibam chorar com honra, façam as pazes e vão ver desenhos animados juntos.

Acordem e embasbaquem-se com a primeira vez que vos embala a magia do grande ecrã, o primeiro gelado de chocolate ou o primeiro elogio.

Acordem e abracem-nos sem medo de dizer que gostam de nós sem quaisquer condições.

Acordem e procurem o amor.

Adultos, acordem. G.F.


(a todos os que sentiram como seu, o hino dos Arcade Fire.)

hábitos

Era uma vez um Franciscano gay. Ele queria ser estilista, mas naqueles tempos era alvo de uma perseguição atroz. Não por ser gay, mas por querer ser estilista. É que Antigamente respeitava-se um dos dogmas centrais do clero: “Um hábito não faz o Monge!” Ele não podia fazer nem um nem dois, nem tão pouco um capucho. Nada :( Apenas a miséria.

Pergunto-me por vezes quem faz então os hábitos? G.F.

à terceira vez, acordámos.


Não é que à terceira vez que acordámos já era amanhã? Sim, não era hoje, era tudo amanhã.

À terceira vez que acordámos tinham-nos assaltado. Ficámos sem o agora. Tornamo-nos calados.

À terceira vez que acordámos tínhamos deixado de ser intemporais. Não havia tempo mas havia um perfume de tardíssimo. Era tão amanhã que quando fomos ao supermercado disseram-nos que já não se fazia coca-cola há algumas décadas: “deixaram de gostar”. Era tão amanhã que quando me viram de boxers e de equipamento do Nápoles número 10, me trataram por Maradona. Tentei explicar-lhes pormenores, dar-me a mim também um passado. Até lhes falei da mão de deus pá e eles perguntaram-me “quem era Deus?”

À terceira vez que acordámos era tão tarde que já nem haviam culpas nem infernos. Era madrugada, mas naquela terceira vez cheirava a final de tarde. Não tínhamos agoras e não sabíamos como iríamos sobreviver àquele assalto. E continuámos sufocados pelo constrangimento.

Tinha sido a terceira vez que acordávamos e tinham-nos roubado o dia de hoje, os cabrões. Tinham-nos despido e tapado a boca. À terceira vez que acordámos já não havia nada a fazer. Tinham-nos profanado os peitos e asfaltado os corações. Por eles passavam a alta velocidade carros de corrida. À terceira vez que acordámos ainda conseguimos ver pelos seus retrovisores, sorrisos cínicos de quem tudo sabe sobre o entardecer.

À terceira vez que acordámos pegámos no que restava dos nossos lençóis. Era tarde demais já e por isso não apagámos a sombra das duas pessoas que neles estava bordada. Em vez de tentarmos adormecer pela quarta-vez despedimos-nos. Tu foste procurar outras sombras. Eu fui à loja de penhores perto da estação de comboios, deixei os lençóis em cima do balcão e vim para casa com algumas sementes de Presente. G.F.

conquista budista

Nunca me vangloriei com nenhuma das minhas conquistas (estou a reservar todas as estórias para os meus netos). Nunca o disse aos 7 ventos especialmente porque talvez nenhuma tivesse sido conquista, fui eu a parte achada e conquistada. Mas tenho a certeza que se um dia conhecer alguma seguidora de Dalai Lama, bonita (e com cabelo) e suas faces se ruborizarem na minha presença, gaguejando ao falarmos, eu vou dizer orgulhoso aos meus netos: “Eu até uma vez deixei uma budista nervosa”. G.F.

o porco Ateu


Era uma vez um porco que não conhecia Deus nem a Morte. Um dia a sua avó, também porca, morreu. O porco ficou muito triste e não compreendeu a ausência eterna da sua avó. “Onde estaria agora?”. Alguns dias procurando “porquês”, o triste suíno foi ter com um mocho rabino. Este disse-lhe através de apaziguadoras palavras que a porca avô do porco se encontrava no céu, “bastava olhar para lá e rezar”. O porco, sem dizer nada ao mocho, foi-se embora chorando.

È que o mocho não sabia que, anatomicamente, os porcos não conseguem olhar para o céu. G.F.

fragmentos para algum qualquer filme português a roçar o intelectualoide



Há tempos ela perguntou-lhe se ele fosse ditador por uma tarde, qual era a sua primeira tirania. Ele respondeu-lhe que “estabeleceria um padrão estético baseado na beleza dela. Todas as mulheres do novo império teriam de ser iguais a si ou seriam enviadas para outros impérios”.

“Mas assim acabava por perder o meu encanto já que não me podias comparar com ninguém, além disso com a falta de mulheres todos os homens do império iriam lutar para ter uma parecida comigo e ainda mais gananciosos se tornariam por me ter. As outras mulheres ficaram deprimidas por nunca conseguírem atingir o meu padrão e tornar-se-iam más amantes. Os homens que não tivessem o mesmo gosto que tu, viveriam infelizes e seriam maus amantes. Basicamente acabariam todos por nos assassinar para serem mais felizes. Isso talvez fosse a pior medida de sempre tomada por um ditador de um dia!”

“Eu estava só a tentar dizer-te algo bonito”
“Ah ok, então o que farias na realidade?”

“Quero lá saber da realidade, só estava a dizer-te que as mulheres do mundo deviam ser todas como tu.”

“Mas se fossem, nós morreríamos!”
“E se morrêssemos? Somos felizes, morreríamos felizes. Além disso daríamos motivos para revolução e felicidade dos outros.”

“Um tirano nunca pensaria assim…”

“Um tirano nunca seria tirano só por um dia…” G.F.