sábado, agosto 04, 2007

à terceira vez, acordámos.


Não é que à terceira vez que acordámos já era amanhã? Sim, não era hoje, era tudo amanhã.

À terceira vez que acordámos tinham-nos assaltado. Ficámos sem o agora. Tornamo-nos calados.

À terceira vez que acordámos tínhamos deixado de ser intemporais. Não havia tempo mas havia um perfume de tardíssimo. Era tão amanhã que quando fomos ao supermercado disseram-nos que já não se fazia coca-cola há algumas décadas: “deixaram de gostar”. Era tão amanhã que quando me viram de boxers e de equipamento do Nápoles número 10, me trataram por Maradona. Tentei explicar-lhes pormenores, dar-me a mim também um passado. Até lhes falei da mão de deus pá e eles perguntaram-me “quem era Deus?”

À terceira vez que acordámos era tão tarde que já nem haviam culpas nem infernos. Era madrugada, mas naquela terceira vez cheirava a final de tarde. Não tínhamos agoras e não sabíamos como iríamos sobreviver àquele assalto. E continuámos sufocados pelo constrangimento.

Tinha sido a terceira vez que acordávamos e tinham-nos roubado o dia de hoje, os cabrões. Tinham-nos despido e tapado a boca. À terceira vez que acordámos já não havia nada a fazer. Tinham-nos profanado os peitos e asfaltado os corações. Por eles passavam a alta velocidade carros de corrida. À terceira vez que acordámos ainda conseguimos ver pelos seus retrovisores, sorrisos cínicos de quem tudo sabe sobre o entardecer.

À terceira vez que acordámos pegámos no que restava dos nossos lençóis. Era tarde demais já e por isso não apagámos a sombra das duas pessoas que neles estava bordada. Em vez de tentarmos adormecer pela quarta-vez despedimos-nos. Tu foste procurar outras sombras. Eu fui à loja de penhores perto da estação de comboios, deixei os lençóis em cima do balcão e vim para casa com algumas sementes de Presente. G.F.

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