quarta-feira, março 19, 2014

quase-primavera

O último beijo que o Sr.M. deu à sua mulher foi há mais de duas décadas. Desde aí, jamais tocou a boca de outra mulher. Já não se emociona quando se lembra disso. É que já não se lembra disso. Pergunta-me pelo Benfica enquanto vislumbra a sépia do bigode emoldurado do seu avô. Grave. Graves. Sepulturas. É quase quase primavera mas a casa perfuma-se de outono há muitas estações. Olhamos os dois lá para fora, chegou alguém. Apolónia, hora do lobo. Do outro lado da linha uma rapariga acaba de conhecer o último amor da sua vida. Conversaram durante todo o espaço que demora o Porto a querer encontrar Lisboa. Ele trabalha como voz-off. Em estações de rádio e, em tempos, de comboios. Anunciava destinos. Por vergonha ou medo de histórias não trocaram de apelidos. Não se adicionarão por enquanto. Tem na mão impressa a reserva: Check In no Hostel Esperança. Sorri e levanta a cabeça para a montra. Vê os jornais do dia a serem deitados fora outra vez. Na capa de um estampa-se a revolta popular. Um cartaz que grita cirílico. Nos olhos de quem o pega, a raiva. Um ferro que o vai matar nas mãos de um polícia para quem a segurança acabou para sempre. Nós não conseguimos ver o jornal. 

"Somos quase campeões caralho" E sorrimos. No andar de cima um bebé chora. Um berço logo à entrada, “raio de lugar para se guardar um bebé”. A mãe é bonita. O pai é incógnito. O bebé não sabe de nada e já chora. Há um vento doce que varre manso esta Lisboa do fim dos dias menos domésticos. Fantasmas dos amigos marinheiros do Sr. M. trepam-lhe todos os mastros das suas palavras. Pergunto-lhe se já descobriu a que sabe o medo? Ele diz-me, “prestes, prestes”. A rapariga adormece sozinha pela última vez na vida. O bebé já não chora.  “Ao menos campeões.”

Gonçalo Fontes

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