quarta-feira, novembro 18, 2009

Há Dias


Há dias em que julgamos
que todo o lixo do mundo
nos cai em cima
depois ao chegarmos à varanda avistamos
as crianças correndo no molhe
enquanto cantam
não lhes sei o nome
uma ou outra parece-me comigo
quero eu dizer :
com o que fui
quando cheguei a ser luminosa
presença da graça
ou da alegria
um sorriso abre-se então
num verão antigo
e dura
dura ainda.


Eugénio de Andrade
de Os lugares de Lume

cometas


'Bora aí contar cometas miúda? È tarde? A cidade ilumina demasiado o espaço? Ia jurar que ontem vi um cometa daqueles bem grandes, aqueles cometas Alentejanos sabes? Ia jurar que os cometas também se despenham na cidade, tipo fogo sem artifício com os vectores desnorteados, ali sem alvos, só para caírem e nós a aproveitar as suas caudas antes de inexistirem. Bora lá miúda, pára de pensar nisso, pára de ler blogues narcísicos e vamos fazer filmes de cometas para pôr no youtube. Apaga a tua conta de facebook, despede-te da tua quinta e dos teus quizzes e dos feeds de quem já não ve os teus feeds. Despede-te disto e vem contar dois ou três cometas. Não estás propriamente sozinha. Nós também pensávamos estar, mas há sempre um étê que aterra de vez em quando e nos faz descobrir que somos bués e quês. Bora lá miúda, não comas mais gelados, larga a sic mulher, daqui a 1 ano ninguém vai saber quem são essas escanzeladas e nós vamos saber quantos cometas contámos esta noite. Bora lá, vamos de carro ou foguetão, depende do preço da gasosa. Vamos ao gordalhufo daquela churrascaria suada, molho tipo maçã “ranheta” à fartazana, ceia dos Deuses. No caminho uns finos do Diabo, se calhar é melhor ir de bicicleta? Siga lá miúda! Está a chover? Vamos àquela loja 24h dos chineses, os tipos vendem chapéus de chuva como quem vende abafados a agro-betos. Sim pá, aqueles chineses sempre com cara de poucos amigos, com olhares taciturnos, parecem os índios, sempre fodidos com os caubóis. Tantos chineses no mundo e eles com tão poucos amigos, não achas estranho? É porque eles nem contam cometas, só pode! Vamos lá, esquece isso, é segunda-feira e depois? Depois nada: hoje há chuva de cometas, o verão ainda não acabou, pelo menos em Buenos Aires, tenho quase a certeza que não! Mas vens ou não? Vamos de metro? Apanhamos o que diz “Reservado”, sempre quisemos ir para destino reservado. Observar cometas em destino reservado podia estar em quarto ou quinta na tua lista de desejos, logo a seguir ao teres uma aventura tórrida com o Gael Garcia Bernal, no meio do Utacama. Levanta-te pá, vamos em frente. Esquece isso, larga isso, estás parvinha? O futuro é um país aqui pertinho e nem precisamos de bilhete nem visto, já lá estamos. É um salto que nem precisa de ser clandestino para te pores logo fina. É isso, vem bailar, eu sei que gostas de dançar, olha dançamos depois o… hummm o mambo? O 5? Não pá, o dois ou ou três, mais que quatro mambos sem identidade chateiam para caraças. Eh pá, ouves a telefonia, os cometas estão aí, quantos não teremos já perdido? Ficas aí n’é, no teu sofá-puzzle do IKEA, a comer gelados do pingo doce e a rebolar pelos canais e pelo Messenger sem nada novo? Qual é a piada de jogar solitárias sem poder partir os baralhos? Bora lá miúda, tu ainda não sabes que quiseste vir! Olha o ponteiro dos segundos todo cínico a mandar-nos à cara o nosso desaproveitamento desta noite, vês? Vais ficar aí de pijama enquanto a vida muda de assunto e tu não tens voto na matéria? Olha que os cometas podem ficar zangados connosco, eles são tipo actores, precisam de público, precisam de ser embalados. Anda lá embalar cometas míuda! Eles podem ficar chateados e não querer cair. Vão ficar possessos! Irados! Irados sim, tão fodidos como ficaram as Zebras quando Noé lhes disse que a entrada na Arca era por ordem Alfabética: imaginas o quão encolerizados podem ficar? Isso, é isso: traz o teu Ipod, fazemos uma playlist das melhores canções dos nossos mundos e botamos uma shuffle esquizo-romântico de embalar … Esse vestido para veres cometas? É o mais bonito! Só tens um vestido feio e eu acho que o pusemos ontem no caixote dos vestidos feios, ali na esquina da rua dos passos perdidos, mas esse sim, sim! Esse é o mais bonito sim… Bom, se quiseres eu não olho enquanto te vestes para irmos ver cometas, embora todas as vezes que te vi vestir, outras tantas quis repetir e outros quádruplos despir. Nem pelo canto do olho miúda? Só de relance, posso mentir e dizer que a minha memória fotográfica já não é óptima para instantes! Só um nano-frame do corpo mais bonito do planeta onde hoje vão chover cometas, estou a pedir demais? Nem um frame? E se pedisse a longa metragem!? Ah, já estás pronta ...Sim… estás linda, não tenho nem preciso de palavras…
Olha, achas que ainda precisamos da porra dos cometas? G.F.

terça-feira, novembro 17, 2009

ciências humanas




dor de burro


Há quanto tempo não sentes aquela dor de burro? Quantos anos passaram desde a última vez que correste milhas só para espetar um patardo naquela bola cinzenta sem gomos e marcar o 10 a 6? Quando é que foi a última vez que fintaste os teus amigos todos mas o guarda -redes te estragou a tarde ao apunhalar o esférico mesmo em cima da linha de golo imaginária? Quantos anos passaram desde a última vez que chegaste a casa de ténis Olimpic de mofo e planta rota, meias encharcadas pelo canto desnivelado do ringue e uma vontade imperial de matar todas as sedes? Quando foi a última vez que caíste no chão a rir depois do livre ter sido directo nos tomates do Sérgio e indirecto no caixa d’óculos do Nuno Tiago? Quantos anos passaram desde que nos roubaram as balizas e a tua monte campo servia de argumento para golos altamente roubados devido a ressaltos de ficção amadora? Quando foi a última vez que festejaste um golo no ângulo e o dedicaste à miúda que achavas que tinha o cabelo mais fixe da turma? Há quanto tempo não sentes aquela dor de burro? G.F.

sou guloso


Sou guloso: como tudo, nunca pouso. Sou guloso, rapo tudo, sou manhoso. Sou guloso, saco tudo ao penoso. Sou guloso. Sou guloso... Sou guloso deslapido orgulhoso. Sou guloso, corrompo em tom sedoso. Sou guloso, amorteço a reforma ao idoso. Sou guloso em camarote do glorioso. Sou guloso, torço os cornos ao honroso. Sou guloso, prevarico cauteloso. Sou guloso, usurário escabroso. Sou guloso! Sou tão guloso! Sou guloso, apartidário faccioso. Sou guloso e o juiz é comichoso. Sou guloso e o juiz é meu esposo. Sou guloso, sou mesmo guloso! Sou guloso, dá-me um abraço caloroso. Sou guloso, transgrido em tom jocoso. Sou guloso, venero a bolsa ansioso. Sou guloso, suborno em tom gracioso.SOU GULOSO! SOU GULOSO! Som guloso de carácter gorduroso. Sou guloso nem sou muito ambicioso. Sou guloso chico-esperto luminoso. Sou guloso da verdade receoso. Sou guloso, o fulano mais untoso. Sou guloso o mais chato desdenhoso. Sou guloso, galocha em mundo pantanoso. Sou guloso, nunca acordo bem cheiroso. Sou guloso, sempre fui religioso. Sou guloso, nunca durmo rancoroso. Sou guloso de código ético gasoso. Sim sou guloso. E se um dia me quiserem tirar as gulodices, essa turba recta e invejosa: estou tranquilo, a nossa Família é gulosa.
G.F.

gajos da frente


«Ora, topa-me só aqueles gajos da frente. Eles preocupam-se, contam os quilómetros, estão a pensar onde é que vão dormir hoje à noite, quanto dinheiro têm para a gasolina, se vai chover, como é que vão conseguir lá chegar… e seja como for eles vão lá chegar, vais ver. Mas precisam de se preocupar e de trair o tempo com urgências falsas ou não, meramente ansiosos e apreensivos. As suas almas só ficam sossegadas apegando-se a qualquer preocupação evidente e comprovada, e logo que a encontram assumem expressões faciais a condizer, que são, bem vês, de infelicidade, e durante esse tempo todas as coisas lhes passam ao lado e eles sabem disso e também isso os preocupa infinitamente. Ouve só! Ouve só!» Jack Kerouac, On the Road