segunda-feira, agosto 10, 2009

sextas-feiras

Amílcar Pereira



Amílcar Pereira ainda dedilha as páginas amarelas quando precisa de alguém que perceba de sifões. Amílcar Pereira, 77 anos, ainda usa o seu telefone verde de discar. «Interessa-me aquele barulhinho, quando a roda volta ao início». A lista mais actualizada que tem é de 2001, ali ao canto, namorando a fuligem. Depois disso nunca mais lhe deixaram nenhuma à porta. Amílcar Pereira diz de cor saber 200 e tal números de telefone de amigos e familiares embora admita já se ter enganado neste ou naquele Zé. Amílcar Pereira até ao verão do euro, ainda era quem carregava ao ombro as botijas de gás. Agora trá -las com um carrinho de mão. Olha de soslaio para quem gosta de canalizar tudo, de lado para quem lhe promete o facilitismo e lhe promete mais tempo. Disse-lhes: Mais cómodo? Mais tempo? Para que quero eu mais tempo, tenho 77, caralho!». Olha para nós sempre com olhos de adeus. Sabe que não estará cá amanhã. Viveu todas as guerras: as mundiais e as outras mais bélicas, as conjugais. Amílcar Pereira não está cansado. Sabe perfeitamente o que é o Google e lamenta quem o conhece, porque ele sempre preferiu saber as coisas pelos outros. Lamenta quem lhe dá informação fidedigna. Lamenta quem não precisa de memorizar nada. Amílcar Pereira adora mentiras, bazófias, histórias de faca e alguidar, conquistas de marinheiros e tretas de caçadores. Lembra-se de tudo. De quase tudo. Uma vez esqueceu-se de renovar o cartão de eleitor. Vai-se esquecendo de votar : não era bem votar, era «rabiscar com afeito grandes pirilaus tal fosse o tamanho das listas». Quando chega a casa tudo lhe consola, principalmente porque ficou viúvo. Mente, sente-se vazio por não ter ninguém a quem dizer sempre que sim. Não precisa de novas oportunidades, foi pescando as que apareceram. Não tem necessidade de dizer aos outros o que pensa, o que está a fazer, o que acha da merda da crise ou da morte do «velho da Guerra.». Não tem necessidade de perguntar aos outros o que pensam, de lhes responder ao exibicionismo. Acredita num Deus fêmea, é a «única razão pela qual isto anda tudo fodido, mas é ao mesmo tempo tão bonito». Amílcar Pereira ainda dedilha as páginas amarelas quando precisa de alguém que perceba de sifões, de cifrões, de excomunhões. Amílcar Pereira, 77 anos, morreu hoje de manhã, maldizendo e blasfemando contra as mudanças instantâneas da vida. Jurou antes do último suspiro, amor eterno ao gerúndio e ódio imortal ao futuro próximo. Teve tempo de por umas palmilhas novas pois, acredita, que há-de ser longo o trilho para o inferno. Depois pegou no seu velho bandolim, deitou-se por cima de uma arca onde guardava os seus livros de cowboys, trauteou uma canção que a mãe lhe cantava e assim restou, dedilhando eternamente um fá sustenido, início de mais um Amílcar Pereira por inventar. G.F.

sexta-feira, agosto 07, 2009

guiar-te.

Bastavas tu para eu ser alegre. Sopro seco esvoaçando-me os cabelos, céu estrangeiro, mais uma manhã a menos. Descontando as bocas cruas que beijei ou os lençóis onde me perdi, o quociente de tudo era, sempre foi, guiar-te. Guiar-te pelos alpendres, pelos telheiros, desviar-te pelas arcadas. Parar-te para falar aos grandes amigos que aquele pequeno Mundo me fez conhecer. Conduzir-te pelas praças, de taça de vinho na sinistra mão e atravessar aquela ponte já longe, o rio sem meio de andar e os dois reflexos de nós correndo. Sozinho, completamente sozinho contigo. Só contigo eu navegava. Viver não era mesmo preciso. Partíamos todos os dias para os mesmos sítios, para as mesmas gentes, para os mesmos hábitos. E partíamos com a mesma estupefacção com que nos foragíamos em tardes de domingo para cada vez mais estranhas estradas distantes da nossa casa.

No pico de Julho, acelerava contigo. Refrescava-me com a brisa de uma saudade futura de te ter que deixar. Deixar-te de mão dada com Agosto a ausentar-se também ele a cada manhã ganha à nossa existência sem tempo. Tu e o melhor gelado da cidade na destra mão faziam-me esquecer o sol quente. Talvez fosse a nossa velocidade, o fervor das ultrapassagens aos sorrisos daqueles tantos passeios que nos admiravam. Sim talvez fosse a velocidade de um estranho num mundo fora do mundo a fazer-me esquecer de te imaginar depois, provavelmente já entregue a outro quando todos começássemos a regressar a novos inícios de capítulos.

Às vezes não me deixavas travar, levavas-me contra as coisas palpáveis, contra uma realidade que não me chegava a magoar, onde o chão proibia qualquer leite derramado. Fazias-me esquecer os prólogos e eu, tantas vezes embriagado, dependia de ti para alcançar todos, para tocar em todas. Para ser o Rei daquele mundo. Para chegar ao palco alegórico de tantas humanas noites. Para te redescobrir sempre e levar-te eu a nossa casa. Sempre hoje, sempre agora, era eu ou eras tu quem nos levava a casa? Amanhã serias de outro porque naquela dimensão és sempre livre e o outro também nunca será teu, por mais que te mude, ou te descubra cadeados distintos. O outro também vai ter de partir. Sim eu tinha a tua chave. E era arrebatado. Não por ti mas pelo que me fazias sentir. Quantas vezes caímos juntos? Quantas vezes me apeteceu bater-te por me teres falhado e desiludido? Quantas vezes me tiveste de levar pela mão para que não tropeçássemos nos carris ainda inúteis? Eu e tu na sombra, não tínhamos inicio nem fim: Continuavas-me. E por continuar, a humidade de sabor a solto nos meus olhos. E por continuar a majestade de possuir todas as nossas ruas, todos os outros sorrisos a derreterem-se daquelas clarabóias, todos os abraços de aperitivos, todo o meu super-heroísmo mal disfarçado.

Bastavas tu para eu ser alegre. Se me perguntarem se eu já sou feliz, eu posso circunscrever-me a responder que ainda não, não como quando te pedalava de olhos fechados a cantar a napolitana universal, embriagado de vinho, poucas virtudes e a poesia de ver um admirável planeta meu arquitectado de paz, girando ao meu redor. Cada vez mais rápido, esperança liquefeita nas maçãs do rosto, cabelos despenteados, mãos firmes agarrando-te. Se me perguntarem se eu já sou livre, terei que outra vez tropeçar, terei que me mascarar, terei que lhes dizer que ainda não. Pelo menos não tanto como quando te tinha, bicicleta roubada a Padova. G.F.