terça-feira, junho 01, 2004

1 de Junho de 1982

Falo e escrevo muito sobre crianças. Tenho a sorte de poder trabalhar com elas todos os fins-de-semana. Tenho a sorte de ter tido sempre uma catrefada de primos mais novos que eu que pegava ao colo, contava piadas e jogava à bola ou ajudava a montar lego e playmobil. Tenho a sorte de ter um tio 10 anos mais velho e que sempre brincou comigo proporcionando alguns dos melhores momentos da minha infância na casa da minha avó de Fátima (que já cada vez menos tenho tempo de ir revisitar).

A infância e as minhas brincadeiras não se escondem nos quintais, nas ladeiras, nos recreios, nos sótãos onde me evadia sem noções de lugares e tempos. A infância nasce-me ainda todos os dias, pintando a lápis de cera os pequenos momentos em que posso dizer que sou feliz. Feliz não, livre. Porque para mim a verdadeira Liberdade era e será e estará no acto puro de brincar. Ao faz de conta, aos jogos de bola sem vencedores, aos dedos feitos pistolas ou pistolas transformadas em dedos, às balas feitas de perdigotos, às pistas desenhadas por pés arrastados na areia, ao braço do sofá da sala que era o meu cavalo preferido, aos “desenhos zanimados” do brinca brincando, às tentativas de recordes mundiais de maiores filas de carrinhos pela casa toda, ao cabelo sempre suado e despenteado, camisas e fatos de treino de fecho desfraldados e ténis de velcro, à apanhada e às escondidas.

Nesse passado que se vai afastando ao sereno ritmo das memórias, reencontro-me criança e não é a nostalgia que descubro. Descubro as raízes de ser ainda assim, de ter a bênção de poder divertir-me como nunca, quando brinco com as crianças. De sorrir quando elas me dizem “ei amigo, vamos por ali que os ladrões já fugiram” ou quando descubro que se pode ver Sonho e Maravilha nos olhos pequeninos que brilham ao ouvir-me inventar que tenho dinossauros anões vivos no meu quarto e usam t-shirts brancas e galochas e cantam músicas dos morangos com açúcar.

Redescubro que a Terra do Nunca ainda pode ser habitável, e que embora as ampulhetas biológicas não parem, lá posso voltar, gritar dá cá mais cinco e receber os pequenos dedos que um dia, adultos, guiarão os nossos lemes. Terra de Liberdade perdida em locais ermos das nossas almas já quase completamente sentenciadas culpadas pelos nossos corpos, pelos vícios, frustrações ou luzes ao fundo dos túneis fundidas. Intervalo de tempo onde a magia realmente existe. Além de ser real é transparente, serena, directa, às vezes cruel, sempre leal. Nessa lealdade de palmo e meio que é o betão de pontes onde não são feitas cobranças.

È sem essas cobranças que vou encontrando os amigos, uns de 4 anos outros de 20. È nessas pontes que atravesso de lá para cá e de mim para eles que descubro a humanidade, a frescura de se ser ainda humano neste mundo que apelida sarcasticamente de ingénuos os que querem a paz, o acabar das armas. Os que comemoram hoje o Dia Mundial da Criança, dia 1 de Junho, o dia do meu aniversário, os putos, desarmam categoricamente os Grandes com os seus jogos, as suas corridas, os seus brinquedos. Porque ainda não têm medo do cliché, porque não sabem nem precisam de saber a maioria das palavras difíceis, porque ás vezes está-se bem melhor é a comer a partir da parte de baixo um corneto de morango ou a tirar macacos do nariz sem ninguém ver.

Em 1982 neste mesmo dia, a minha mãe e o meu pai olhavam para mim e eu dormia, tinha algumas horas de vida. È impossível descrever a hipnose das chamas de uma fogueira, tornar linguagem a água que brota de uma nascente. Ver uma criança, um bebé a dormir é uma experiência desarmante em qualquer situação mesmo marcial. Aproximação do divino, dúvida do ateísmo. Embasbacamo-nos. Olhamos directa e serenamente para o rosto de um futuro ainda adormecido.Contemplamos a esperança.
Obrigado pai e mãe pela oportunidade de ter chegado aqui tão feliz. G.F.

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