terça-feira, abril 27, 2004

Num «abril e fechar de olhos»

Num «Abril e fechar de olhos», a liberdade fez-se adulta. Cresceram com ela os homens que a viveram. Ambos deixaram de ser crianças.

Analisamos hoje o passado ingénuo que vivemos aos olhos dos “grandes”. Fotografamos o ontem com as objectivas de tecnologia de ponta que inventámos hoje. Aos poucos, a nostalgia desses tempos felizes, do sonho, do amor incondicional pela libertação humana, deu lugar às frustrações de um povo que ainda vive com medo de cair da cadeira, de um povo que teima em vestir o véu nostálgico de um futuro transformado em beco difuso sem saída. Esquecemo-nos dessa madrugada em que crescer não era um receio, em que partir rumo à felicidade era tangível em cada bater de coração. Fomos crescendo, fomos esquecendo, fomos amargando. Fomo-nos tornando homens. Fomo-nos tornando mulheres. Depressa começámos todos a ser o que esperavam de nós. Depressa começámos a sonhar o que esperavam que sonhássemos. Deixámos de acreditar que amanhã ainda poderemos ser tudo. Ou porque há pouco amanhã, ou porque há pouca oportunidade para ser tudo, ou porque ser alguma coisa é suficiente e ser-se tudo é inqualificavelmente demagógico.

Psicanalisamos a criança que foi Abril para nos percebermos à esquerda e à direita, para instrospecionarmos o nossa evolução ainda tão parca. Esquecemo-nos que a criança Abril nasceu do breu de uma noite longa em que alguns, quase todos, não tiveram medo de fazer Amor. Esquecemo-nos que durante essa noite prolongada em que vivemos houve quem quisesse apenas entregar-se corpo a corpo, rasgar as fardas cinzentas, e fazer da pele salgada um novo mar onde partir desagrilhoados, satisfeitos, plenos. Nessas trevas que tanto tempo demoraram a findar, homens e mulheres, sem cores, nem fados, nem deuses, decidiram ter a criança que Abril nos trouxe. Amaram-se rompendo mordaças, erguendo as bandeiras invisíveis do singelo desejo de ser livre, esquecendo-se das frustrações capatazes, vencendo o medo, sempre o medo que diziam salvar da loucura subversiva. Nesse Inverno pavorosamente infindável, em que os amantes desoprimiram pulsações debaixo dos lençóis férteis de verdade, tecidos de felicidade virgem, concebeu-se a criança Abril.

E alguns pais dessa criança logo começaram a sonhar com o seu futuro, logo começaram a educa-la à sua maneira, logo quiseram que retirasse os cravos das baionetas, logo trataram de a moldar, dar-lhe números, parâmetros, protocolos, quilogramas burocráticos. Ofereceram-lhe rosas, martelos, rebuçados de laranja. Compraram-lhe fitas de Holywood, gravaram-lhe cassetes pop. Ensinaram como ler e escrever. Ampliaram-lhes os recreios de alcatrão e premiaram-lhe na puberdade com a identidade europeia por ter sido sempre bem comportadinha. Já licenciada andou de teleférico, descansou à sombra da pala de vários pavilhões. Cresceu, teve filhos. Sente-se importante, descobriu uma oportunidade única de ser efémera e futebolisticamente famosa internacionalmente. Essa criança, que agora adulta se maquilha, aparece nas revistas e dança desengonçadamente ao som do rock das belas vistas, não escondendo as suas perversões sexuais e o apetite pelo dourado.Tem rugas. Indisfarçáveis. À noite olha-se ao espelho. Lembra-se vagamente, por segundos, de quando era pequena e a pegaram ao colo, a levantaram no ar aos milhares e a beijaram chorando desalmadamente de alegria, gritando-lhe pelo nome. Relembra-se de quando ainda podia ser tudo, de quando partir era mais importante que chegar. O fado embala-a mas também a assusta. Chega a cama e deita-se esquecendo-se de ensinar aos seus filhos que ainda é possível ver em cada rosto igualdade. Chega a cama e deita-se esquecendo-se de contar aos seus filhos que não são as cruzes, os cifrões e as bandeiras que fazem com que cada dia tenha significado. Chega a cama e pensa nos orçamentos, abdominais, relatórios, compras, peelings que tem de fazer no dia seguinte. Talvez comece a pensar que os que não queriam o seu nascimento é que estavam certos ou pelo contrário comece a sonhar com uma alvorada de mudança, na infância de um novo império ainda por conquistar. Alguém lhe enviará uma mensagem para o telemóvel, que poderá ser de esperança ou de perpétua deriva. Amanha saber-se-à.Num «Abril e fechar de olhos» adormece. G.F.

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