Lisboa está aí. Está descoberta na grande torrente do rio da
fama global. Tornou-se naquela banda que alguns melómanos alternativos
cultivavam e que em sete estações sobe aos topos das tabelas. (sete estações, o
tempo que demoram as coisas a morrer ou a tornar-se fenómenos). Lisboa está aí
para todos saberem quem é.
Eu, que sempre a conheci, sinto um certa
dor-de-cotovelo-mouro. Um ciúme alfacinha. Ambíguo como a todo o ciúme cheira e
melancólico como tudo o que é de Lisboa se prova.
A culpa também é de Ary dos Santos e do Carlos do Carmo. Ou
de Bernardim Ribeiro. A Lisboa sempre a senti Menina e Moça. Menina de significado
terno, cândido mas também de outra (mesma) face lasciva e sedutora. Menina -
uma das palavras mais bonitas da Língua Portuguesa. Lisboa o substantivo com
mais Luz de todos os léxicos terrestres. Menina-Lisboa- Mulher. Menina dos
nossos olhos. Menina que se espraia no Tejo. Solteira que conquistamos mas com
quem não dormimos, porque a nossa cama é Queluz, Almada ou Cascais.
Lisboa, perfil
feminino e Capital das outras capitais mulheres.
Menina-Metrópole por quem só as gentes com tesão por mulheres (explicitas ou de
armários, racionais ou edipianas) se podem verdadeiramente apaixonar.
Ela está aí para
todos conhecerem, esta Menina Celto-Mulata, nascida da mistura mundial das
Mulheres mais Bonitas conhecidas e que todos os invasores não ousaram matar,
sobretudo desejando nela permanecer.
A nós, que a conhecemos de sempre, é-nos impossível não
comparar com todas as outras meninas. Por mais nostálgico-fascinante que esteja
a ser a vista a partir da Table Moutain ou a silhueta bordada a minaretes de Istambul ao
pôr-do-sol é impossível não comparar logo com a nossa Lisboa. Eu olhei os
canais em Veneza e vi gôndolas, um mercador-tenor e um Carnaval-obra-prima.
Olhei os lagos de Covadonga e vi vacas no término bucólico do Paraíso, alguma
Paz . Olhei Bled e vi fadas, rainhas e arte nas idades das trevas. Mas quando eu
olho o Tejo eu sou o Mundo, todas as utopias dos que antes olharam o nosso rio
e quiseram «aparelhar esse barco da ilusão». E também vejo merda, tainhas
oleadas, cacilheiros de formigas-em-lata. Que afinal também boiam por
quimeras.
Nenhuma outra Pólis
me faz querer navegar assim em vez de viver sempre ali. E eu preciso e gosto disso.De voltar-lhe sempre.
Estas comparações são
seguramente provincianas, bairristas, pequenas, mas Lisboa nunca me foi platónica
e pergunto-me o que será do amor se este for um território neutro onde não se
queiram enterrar as bandeiras apaixonadas?
Esta Lisboa-Canção aí à descoberta da nova vaga turística foi
o lugar escolhido pelos nossos pais para nascermos. Gostava que fossemos muitos
mais. Que Lisboa pudesse mesmo dar ao Universo bué alfacinhazinhas, filhos e
filhas de Olissipo que enchessem o Jardim Zoológico na Primavera, fizessem o
passeio dos tristes de Domingo até à Boca do Inferno ou dessem o primeiro beijo
em Sintra. Que surgissem mais alfacinhas de nova genética variada, que
respondessem por “sou escalabitano-zulu”, sou “transmontano-inuit” e que
aprendessem todos a cantar fado vadio à desgarrada e chorassem ao verem imagens
do Glorioso de Eusébio e Coluna a ganharem a Taça dos Campeões Europeus. Gostava
que Lisboa, Cidade-Mãe, nos pudesse dar mais filhos. Por azar, esta e outras
cidades também tiveram de deitar cá para fora os seus bastardos tornando Lisboa,
acompanhando o passo das suas pequenas irmãs por todo o país, numa cidade-de-regresso,
numa terra para os que só a querem visitar ou que têm dinheiro para sustentar
os seus vícios próprios de uma bela cidade-sol.
Lisboa está aí para
os outros a descobrirem. Está descoberta. Eu fico genuinamente feliz com isso.
Alegro-me muito com facto de toda a gente puder conhecer este meu amor que
compreende tantos outros pequenos amores. Alegra-me que saibam que existe uma
identidade Lisboeta, que se misturem comigo e que me ensinem. Que percebam que
não somos Madrid. Que aproveitem esta luz e fiquem mais bonitos. Que saibam a
que cheira a liberdade num cravo ou a canela de um pastel de Belém. Que dancem
sentindo nos dedos as sardinhas.
Mas fico muito triste
por perceber que Lisboa nem precisava assim de muitos novos filhos. Precisava
de vocês meus amigos. Que aqui estivessem quando faz frio, que pudessem enjoar
de bacalhau, que participassem nas discussões académicas, criassem identidades
artísticas aqui, que alterassem as mediocridades dos círculos políticos
nacionais. Gostava que simplesmente vissem os vossos pais envelhecer.
Esta mágoa que ligeiramente abocanha a raiva acalma-se
porque sei que um dia vocês vão conseguir voltar de vez das cidades
estrangeiras onde vos deixaram continuar a sonhar. Lisboa
estará ali para os outros mas aqui à vossa espera. Então Saudadicida e Moça. Sempre Menina.
Gonçalo Fontes