sexta-feira, janeiro 24, 2014

Deixando o Pago



Deixando o Pago

Alcei a perna no pingo
E saí sem rumo certo,
Olhei o pampa deserto
E o céu fincado no chão,
Troquei as rédeas de mão,
Mudei o pala de braço
E vi a lua no espaço
Clareando todo o rincão.

E a trotezito no mais,
Fui aumentando a distância
Deixando o rancho da infância
Coberto pela neblina;
Nunca pensei que minha sina
Fosse andar longe do pago
E trago na boca o amargo
Dum doce beijo de china.

Sempre gostei da morena,
É minha cor predileta,
Da carreira em cancha reta,
Dum truco numa carona,
Dum churrasco de mamona,
Na sombra do arvoredo,
Onde se oculta o segredo
Num teclado de cordeona.

Cruzo a última cancela
Do campo pro corredor
E sinto um perfume de flor,
Que brotou na primavera.
À noite, linda que era,
Banhada pelo luar,
Tive ganas de chorar
Ao ver o meu rancho tapera.

Como é linda a liberdade
Sobre o lombo do cavalo
E ouvir o canto do galo,
Anunciando a madrugada,
Dormir na beira da estrada
Num sono longo e sereno
E ver que o mundo é pequeno
E que a vida não vale nada.

O pingo tranqueava largo
Na direção de um bolicho,
Onde se ouvia o cochicho
De uma cordeona acordada;
Era linda a madrugada,
A estrla d'alva saía
No rastro das três marias,
Na volta grande da estrada.

Era um baile - um casamento
Quem sabe algum batizado,
Eu não era convidado,
Mas tava ali de cruzada,
Bolicho em beira de estrada
Sempre tem um índio vago,
Cachaça pra tomar um trago,
Carpeta pra uma carteada.

Falam muito no destino,
Até nem sei se acredito,
Eu fui criado solito,
Mas sempre bem prevenido,
índio do queixo torcido,
Que se amansou na experiência.
Eu vou voltar pra querência,
Lugar onde fui parido. 

João da Cunha Vargas, Poeta gaúcho do início do século passado

avós em Kiev


quinta-feira, janeiro 23, 2014

Do tempo em que éramos homens


Um tempo houve em que fomos homens. Fosse pelo fogo debaixo de panos-tenda em noites tempestuosas ou as bolhas das topografias do nosso país interior. Fosse por quem nos guiava pelos nós-de-porco, fosse pelos refugados a cheirar a detergente, fosse pelas varas serradas a suor, fosse pelos DireStraits na carrinha velha. Fosse talvez sobretudo por não termos nem paredes nem tectos, termos connosco o frio, o cansaço, umas vezes o medo, muitas vezes firmamentos. Sempre barbas de três semanas mal semeadas.
Nessa altura em que o Umbelino era um selvagem os absides ainda não estavam em vias de extinção. Talvez Maria Madalena Bento Maurício fosse viva e ainda havia dois ou três de nós que comungavam. Nessa altura nós éramos homens. Crescíamos assim, a cada semana, a cada reunião no canto, a cada quilómetro sob um nosso grande sol, a cada galgada da Calçada do Preto.

 Somos porventura homens somente quando estamos a crescer e o percebemos. Seja para que direcção for. Seja em que idade for. Assim pensando, acho que aquela foi a nossa idade de sermos homens. Aquela foi também a nossa ideia de sermos homens. Controlarmos com o mesmo poder quer a natureza quer a condição de se ser sapiens duas vezes. Tão fácil como domesticar uma labareda e amansar Deus numa canção dos Led Zeppelin. Nesse tempo em que tomávamos banhos invernais no aqueduto a Fonteireira ainda não estava em vias de extinção. Talvez o Horácio ainda tivesse dentes e ainda havia um ou dois de nós que não sabia o que era um primeiro grande amor. Nessa altura em que era delicioso um frango mal churrascado não precisávamos de quase nada para sermos felizes. Pedaços do mato e ferramentas inventadas há milhares de anos por outros também homens. O suficiente para uma mochila. Somente o necessário para compor aqueles extraordinários momentos em que sentimos que somos adultos aos 15 anos. Sim, sentíamo-nos adultos e isso era o melhor do nosso adolescer. Então éramos homens e acreditávamos nisso. Fossem as brasas do fim, fosse a lama do princípio, fossem os gritos dos jogos nocturnos, fosse a vitória ou a desventura: a nossa melhor juventude de homens era ali. Naquele campo do Vale Escuro, na podridão daquele sisal de equipa ou na placa que indicava o final de mais uma aldeia. Mas não teremos sido também homens enquanto passávamos a mão pelos calos cicatrizados pelos machados, ou nas boleias da camioneta de caixa-aberta que nos resgatou para o Algar do Carvão? Ou no perfume da terra molhada na alvorada de mais um dia?

Preparávamo-nos para sermos melhores gentes. Guias, sobretudo o Gil, quem mais me ensinou e que deixou esta vida tão cedo, prepararam-me para ser melhor com o seu exemplo. Ele foi sempre Homem. Hoje muitos de nós conseguimos, outros (se calhar mais) mentimo-nos disso. Brincamos a isso trocando de fardas. Bajulando aplicações , patrões e orações que nos dão motivações. Parando de cantar enquanto caminhamos. Tirando as barbas e as guadelhas para deixar crescer mantras organizacionais. Competindo por um punhado de jantares no restaurante-que-faz-aquela-merda-gourmet-do-Sri-Lanka e ultrapassando pela direita. Esquecendo-nos de ser gentis com a senhora de meia idade que vive dois terços da sua vida diária a passar códigos de barras e a olhar para um tapete rolante. Cessando cidadanias, aumentando as fotos a nós próprios. Desdenhando qualquer ideia que tenha o mínimo travo a utopia, desacreditando que é possível fazer qualquer coisa para que isto fique mesmo melhor do que aquilo que encontrámos. E no fim, fugindo até da morte e do mistério da vida. Escapando das leituras de livros partilhadas ou do discutir em grupo cheirando-nos a fumo de eucalipto. Como se pensar fosse sempre mau e o querer saber mais sobre quem somos ser associado a um vírus pernicioso. Como se passear a pé por uma terra estranha fosse assustador e saudável sim fosse viver um fim de semana maratoneando uma série sobre psicopatas nova-iorquinos.
Existe agora um tempo em que brincamos aos episódios, recalcamos ambições de quando éramos putos, ganhando medo ao ridículo da experimentação, da constipação, da infantilização, da cicatrização e da permeabilização. Metamorfoseando-nos em animais. Esquecendo-nos de despedir todos os dias de quem gostamos, e recolhendo-nos  sem saber que gente fomos hoje, que homens novos podemos  ser amanhã.  E dizem-me que as probabilidades científicas de rejuvenescermos são mínimas. Se são, encontremo-las fora da replicabilidade das generalizações: façamos discursos como o chefes dos piratas no “Peter Pan” quando alguém fizer um brinde; usemos bigodes falsos quando formos ao pingo doce; peçamos boleia ao que nos for estrangeiro ou cantemos todos juntos no carro uma canção quando estivermos a vir da Arrifana ou a pé quando estivermos mesmo a chegar ao Cercal. Nascerão filhos disto tudo: Marias, Sebastiões, Letícias, Marianas, Guilhermes e Gabrielas e o teu bebé também.

 Regressemos pois ao tempo em que éramos homens.

Gonçalo Fontes

quarta-feira, janeiro 22, 2014

Pré-ferir.

Mais tarde do que cedo reaparece na tua mesa de cabeceira uma folha desbranqueada que caiu de uma das estantes. Esse quadrilátero traz algumas ideias caligrafadas a carvão e agora ressuscitadas. Antes dizer algumas tiranias do dever : “ ler mais”, “correr mais”(riscada) “correr ”, “comer menos” (mal apagada), “comer melhor ”, “agradecer”, “dizer que os amo” (sublinhada), “fazê-la feliz”, “acordar relativamente cedo”, “aparar a barba”, “permanecer não mais que o tempo suficiente em lugares desoladores”, “voltar a marcar golos”, “esquecer os problemas dos outros”, “encontrar soluções para ti”, “poupar dinheiro para hipotética viagem a Marte”, “gastar menos” (tracinho me acrescentado), “cortar as unhas” “afiar o…. (imperceptível), “jogar à cabra cega sem ser mais um bullie que escarniza a cabra”, “dormir mais uma vez ao relento no Prato della Valle”, “dormir mais uma vez na cama do meu quarto de sempre”, “procurar o cartão de sócio”, “fazer menos associações livres de ideias”, “visitar a minha Avó” (tinta esbatida, molhada), “voltar a rir”, “dizer basta”, “prolongares-te no que é bom”, “atestar o carro”, “esvaziar o caixote-anão de lixo que está no quarto”,” dançar longe”, “dançar perto”, “moderar as boas expressões”, “poupar para presentes das bodas”, “desejar casar”, “navegar só”, “vice-versa", "embasbacar-me". (a caneta de filtro vermelha molin)

Mais cedo do que tarde tentas compreender estas listas, quem as fez durante o sono, porque vem uma atrás da outra, porque preferiste escolhê-las. Puta da lógica sempre querer promiscuir-se entre os honestos senhores caos da bela mente. Claro que foste tu que as escreveste mas a amnésia torna tudo  mítico. Quem te narra a lista sebastianista torna-se um ente fabuloso em discurso voz-off cavernoso de um vulgar trailer de Hollywood. Vem de capa, emergindo de um smog snob por ti plantado. Só que ninguém é fabuloso, nem as raposas, nem os corvos nem tampouco La Fontaine. Esta e outras listas são só, serão sempre apenas, papeis. Vocábulos-gatilhos, enquanto continuares a preferir não as disparar para ti ou para o pequeno mundo.


Preferiste quase sempre estar só ali em romarias industrializadas. E preferiste desaparecer em combates de erotismo plastificado, preferiste ancorar-te a um punhado de boas mentiras bem cerzidas sobre aquilo que te é tradicional e seguro. Preferiste ser a Suíça da Grande Guerra do teu coração mondado. Tudo isso foi preferires não o fazer. E não precisas, não tens de preferir isso. Podes sempre escolher nem chegares a preferir listas. Ir logo aos checkouts. Ir ao impulso das outras praças, outras vidas, outros lábios, outros vinhos, outros deuses desalmados. Podes descalçar à socapa os Loubutin à  Morte, desafinar os seus fados. Dançar o Tango a um, a três, a mil. E se te deixares incompreender todas aquelas coisas estranhas cozinhadas numa panela de pressão a pavor e te imaginares a terminar a tarde como um poema? Adormeceres sem listas. Adormeceres desalistado de todos os exércitos amorais que te esticam a corda. Sem escreveres mais. Seres só eu e eu ser tu, só bonitos. Nem mais cedo, nem mais tarde. Sem precisarmos de preferências, de nos pré-ferirmos a todos?

Gonçalo Fontes