quarta-feira, janeiro 22, 2014

Pré-ferir.

Mais tarde do que cedo reaparece na tua mesa de cabeceira uma folha desbranqueada que caiu de uma das estantes. Esse quadrilátero traz algumas ideias caligrafadas a carvão e agora ressuscitadas. Antes dizer algumas tiranias do dever : “ ler mais”, “correr mais”(riscada) “correr ”, “comer menos” (mal apagada), “comer melhor ”, “agradecer”, “dizer que os amo” (sublinhada), “fazê-la feliz”, “acordar relativamente cedo”, “aparar a barba”, “permanecer não mais que o tempo suficiente em lugares desoladores”, “voltar a marcar golos”, “esquecer os problemas dos outros”, “encontrar soluções para ti”, “poupar dinheiro para hipotética viagem a Marte”, “gastar menos” (tracinho me acrescentado), “cortar as unhas” “afiar o…. (imperceptível), “jogar à cabra cega sem ser mais um bullie que escarniza a cabra”, “dormir mais uma vez ao relento no Prato della Valle”, “dormir mais uma vez na cama do meu quarto de sempre”, “procurar o cartão de sócio”, “fazer menos associações livres de ideias”, “visitar a minha Avó” (tinta esbatida, molhada), “voltar a rir”, “dizer basta”, “prolongares-te no que é bom”, “atestar o carro”, “esvaziar o caixote-anão de lixo que está no quarto”,” dançar longe”, “dançar perto”, “moderar as boas expressões”, “poupar para presentes das bodas”, “desejar casar”, “navegar só”, “vice-versa", "embasbacar-me". (a caneta de filtro vermelha molin)

Mais cedo do que tarde tentas compreender estas listas, quem as fez durante o sono, porque vem uma atrás da outra, porque preferiste escolhê-las. Puta da lógica sempre querer promiscuir-se entre os honestos senhores caos da bela mente. Claro que foste tu que as escreveste mas a amnésia torna tudo  mítico. Quem te narra a lista sebastianista torna-se um ente fabuloso em discurso voz-off cavernoso de um vulgar trailer de Hollywood. Vem de capa, emergindo de um smog snob por ti plantado. Só que ninguém é fabuloso, nem as raposas, nem os corvos nem tampouco La Fontaine. Esta e outras listas são só, serão sempre apenas, papeis. Vocábulos-gatilhos, enquanto continuares a preferir não as disparar para ti ou para o pequeno mundo.


Preferiste quase sempre estar só ali em romarias industrializadas. E preferiste desaparecer em combates de erotismo plastificado, preferiste ancorar-te a um punhado de boas mentiras bem cerzidas sobre aquilo que te é tradicional e seguro. Preferiste ser a Suíça da Grande Guerra do teu coração mondado. Tudo isso foi preferires não o fazer. E não precisas, não tens de preferir isso. Podes sempre escolher nem chegares a preferir listas. Ir logo aos checkouts. Ir ao impulso das outras praças, outras vidas, outros lábios, outros vinhos, outros deuses desalmados. Podes descalçar à socapa os Loubutin à  Morte, desafinar os seus fados. Dançar o Tango a um, a três, a mil. E se te deixares incompreender todas aquelas coisas estranhas cozinhadas numa panela de pressão a pavor e te imaginares a terminar a tarde como um poema? Adormeceres sem listas. Adormeceres desalistado de todos os exércitos amorais que te esticam a corda. Sem escreveres mais. Seres só eu e eu ser tu, só bonitos. Nem mais cedo, nem mais tarde. Sem precisarmos de preferências, de nos pré-ferirmos a todos?

Gonçalo Fontes

Sem comentários: