quinta-feira, janeiro 23, 2014

Do tempo em que éramos homens


Um tempo houve em que fomos homens. Fosse pelo fogo debaixo de panos-tenda em noites tempestuosas ou as bolhas das topografias do nosso país interior. Fosse por quem nos guiava pelos nós-de-porco, fosse pelos refugados a cheirar a detergente, fosse pelas varas serradas a suor, fosse pelos DireStraits na carrinha velha. Fosse talvez sobretudo por não termos nem paredes nem tectos, termos connosco o frio, o cansaço, umas vezes o medo, muitas vezes firmamentos. Sempre barbas de três semanas mal semeadas.
Nessa altura em que o Umbelino era um selvagem os absides ainda não estavam em vias de extinção. Talvez Maria Madalena Bento Maurício fosse viva e ainda havia dois ou três de nós que comungavam. Nessa altura nós éramos homens. Crescíamos assim, a cada semana, a cada reunião no canto, a cada quilómetro sob um nosso grande sol, a cada galgada da Calçada do Preto.

 Somos porventura homens somente quando estamos a crescer e o percebemos. Seja para que direcção for. Seja em que idade for. Assim pensando, acho que aquela foi a nossa idade de sermos homens. Aquela foi também a nossa ideia de sermos homens. Controlarmos com o mesmo poder quer a natureza quer a condição de se ser sapiens duas vezes. Tão fácil como domesticar uma labareda e amansar Deus numa canção dos Led Zeppelin. Nesse tempo em que tomávamos banhos invernais no aqueduto a Fonteireira ainda não estava em vias de extinção. Talvez o Horácio ainda tivesse dentes e ainda havia um ou dois de nós que não sabia o que era um primeiro grande amor. Nessa altura em que era delicioso um frango mal churrascado não precisávamos de quase nada para sermos felizes. Pedaços do mato e ferramentas inventadas há milhares de anos por outros também homens. O suficiente para uma mochila. Somente o necessário para compor aqueles extraordinários momentos em que sentimos que somos adultos aos 15 anos. Sim, sentíamo-nos adultos e isso era o melhor do nosso adolescer. Então éramos homens e acreditávamos nisso. Fossem as brasas do fim, fosse a lama do princípio, fossem os gritos dos jogos nocturnos, fosse a vitória ou a desventura: a nossa melhor juventude de homens era ali. Naquele campo do Vale Escuro, na podridão daquele sisal de equipa ou na placa que indicava o final de mais uma aldeia. Mas não teremos sido também homens enquanto passávamos a mão pelos calos cicatrizados pelos machados, ou nas boleias da camioneta de caixa-aberta que nos resgatou para o Algar do Carvão? Ou no perfume da terra molhada na alvorada de mais um dia?

Preparávamo-nos para sermos melhores gentes. Guias, sobretudo o Gil, quem mais me ensinou e que deixou esta vida tão cedo, prepararam-me para ser melhor com o seu exemplo. Ele foi sempre Homem. Hoje muitos de nós conseguimos, outros (se calhar mais) mentimo-nos disso. Brincamos a isso trocando de fardas. Bajulando aplicações , patrões e orações que nos dão motivações. Parando de cantar enquanto caminhamos. Tirando as barbas e as guadelhas para deixar crescer mantras organizacionais. Competindo por um punhado de jantares no restaurante-que-faz-aquela-merda-gourmet-do-Sri-Lanka e ultrapassando pela direita. Esquecendo-nos de ser gentis com a senhora de meia idade que vive dois terços da sua vida diária a passar códigos de barras e a olhar para um tapete rolante. Cessando cidadanias, aumentando as fotos a nós próprios. Desdenhando qualquer ideia que tenha o mínimo travo a utopia, desacreditando que é possível fazer qualquer coisa para que isto fique mesmo melhor do que aquilo que encontrámos. E no fim, fugindo até da morte e do mistério da vida. Escapando das leituras de livros partilhadas ou do discutir em grupo cheirando-nos a fumo de eucalipto. Como se pensar fosse sempre mau e o querer saber mais sobre quem somos ser associado a um vírus pernicioso. Como se passear a pé por uma terra estranha fosse assustador e saudável sim fosse viver um fim de semana maratoneando uma série sobre psicopatas nova-iorquinos.
Existe agora um tempo em que brincamos aos episódios, recalcamos ambições de quando éramos putos, ganhando medo ao ridículo da experimentação, da constipação, da infantilização, da cicatrização e da permeabilização. Metamorfoseando-nos em animais. Esquecendo-nos de despedir todos os dias de quem gostamos, e recolhendo-nos  sem saber que gente fomos hoje, que homens novos podemos  ser amanhã.  E dizem-me que as probabilidades científicas de rejuvenescermos são mínimas. Se são, encontremo-las fora da replicabilidade das generalizações: façamos discursos como o chefes dos piratas no “Peter Pan” quando alguém fizer um brinde; usemos bigodes falsos quando formos ao pingo doce; peçamos boleia ao que nos for estrangeiro ou cantemos todos juntos no carro uma canção quando estivermos a vir da Arrifana ou a pé quando estivermos mesmo a chegar ao Cercal. Nascerão filhos disto tudo: Marias, Sebastiões, Letícias, Marianas, Guilhermes e Gabrielas e o teu bebé também.

 Regressemos pois ao tempo em que éramos homens.

Gonçalo Fontes

1 comentário:

Anónimo disse...

e que bom regresso é este ao oráculo!