Um tempo houve em que fomos
homens. Fosse pelo fogo debaixo de panos-tenda em noites tempestuosas ou as
bolhas das topografias do nosso país interior. Fosse por quem nos guiava pelos nós-de-porco,
fosse pelos refugados a cheirar a detergente, fosse pelas varas serradas a suor,
fosse pelos DireStraits na carrinha velha. Fosse talvez sobretudo por não
termos nem paredes nem tectos, termos connosco o frio, o cansaço, umas vezes o
medo, muitas vezes firmamentos. Sempre barbas de três semanas mal semeadas.
Nessa altura em que o Umbelino
era um selvagem os absides ainda não estavam em vias de extinção. Talvez Maria
Madalena Bento Maurício fosse viva e ainda havia dois ou três de nós que
comungavam. Nessa altura nós éramos homens. Crescíamos assim, a cada semana, a
cada reunião no canto, a cada quilómetro sob um nosso grande sol, a cada
galgada da Calçada do Preto.
Somos porventura homens somente quando estamos
a crescer e o percebemos. Seja para que direcção for. Seja em que idade for. Assim
pensando, acho que aquela foi a nossa idade de sermos homens. Aquela foi também
a nossa ideia de sermos homens. Controlarmos com o mesmo poder quer a natureza
quer a condição de se ser sapiens duas vezes. Tão fácil como domesticar uma
labareda e amansar Deus numa canção dos Led Zeppelin. Nesse tempo em que
tomávamos banhos invernais no aqueduto a Fonteireira ainda não estava em vias
de extinção. Talvez o Horácio ainda tivesse dentes e ainda havia um ou dois de nós
que não sabia o que era um primeiro grande amor. Nessa altura em que era delicioso
um frango mal churrascado não precisávamos de quase nada para sermos felizes.
Pedaços do mato e ferramentas inventadas há milhares de anos por outros também
homens. O suficiente para uma mochila. Somente o necessário para compor aqueles
extraordinários momentos em que sentimos que somos adultos aos 15 anos. Sim,
sentíamo-nos adultos e isso era o melhor do nosso adolescer. Então éramos
homens e acreditávamos nisso. Fossem as brasas do fim, fosse a lama do princípio,
fossem os gritos dos jogos nocturnos, fosse a vitória ou a desventura: a nossa
melhor juventude de homens era ali. Naquele campo do Vale Escuro, na podridão
daquele sisal de equipa ou na placa que indicava o final de mais uma aldeia. Mas
não teremos sido também homens enquanto passávamos a mão pelos calos
cicatrizados pelos machados, ou nas boleias da camioneta de caixa-aberta que
nos resgatou para o Algar do Carvão? Ou no perfume da terra molhada na alvorada
de mais um dia?
Preparávamo-nos para sermos
melhores gentes. Guias, sobretudo o Gil, quem mais me ensinou e que deixou esta
vida tão cedo, prepararam-me para ser melhor com o seu exemplo. Ele foi sempre Homem.
Hoje muitos de nós conseguimos, outros (se calhar mais) mentimo-nos disso.
Brincamos a isso trocando de fardas. Bajulando aplicações , patrões e orações que
nos dão motivações. Parando de cantar enquanto caminhamos. Tirando as barbas e
as guadelhas para deixar crescer mantras organizacionais. Competindo por um
punhado de jantares no restaurante-que-faz-aquela-merda-gourmet-do-Sri-Lanka e
ultrapassando pela direita. Esquecendo-nos de ser gentis com a senhora de meia
idade que vive dois terços da sua vida diária a passar códigos de barras e a
olhar para um tapete rolante. Cessando cidadanias, aumentando as fotos a nós
próprios. Desdenhando qualquer ideia que tenha o mínimo travo a utopia,
desacreditando que é possível fazer qualquer coisa para que isto fique mesmo
melhor do que aquilo que encontrámos. E no fim, fugindo até da morte e do
mistério da vida. Escapando das leituras de livros partilhadas ou do discutir em
grupo cheirando-nos a fumo de eucalipto. Como se pensar fosse sempre mau e o
querer saber mais sobre quem somos ser associado a um vírus pernicioso. Como se
passear a pé por uma terra estranha fosse assustador e saudável sim fosse viver
um fim de semana maratoneando uma série sobre psicopatas nova-iorquinos.
Existe agora um tempo em que
brincamos aos episódios, recalcamos ambições de quando éramos putos, ganhando
medo ao ridículo da experimentação, da constipação, da infantilização, da cicatrização
e da permeabilização. Metamorfoseando-nos em animais. Esquecendo-nos de
despedir todos os dias de quem gostamos, e recolhendo-nos sem saber que gente fomos hoje, que homens
novos podemos ser amanhã. E dizem-me que as probabilidades científicas
de rejuvenescermos são mínimas. Se são, encontremo-las fora da replicabilidade
das generalizações: façamos discursos como o chefes dos piratas no “Peter Pan”
quando alguém fizer um brinde; usemos bigodes falsos quando formos ao pingo
doce; peçamos boleia ao que nos for estrangeiro ou cantemos todos juntos no
carro uma canção quando estivermos a vir da Arrifana ou a pé quando estivermos
mesmo a chegar ao Cercal. Nascerão filhos disto tudo: Marias, Sebastiões,
Letícias, Marianas, Guilhermes e Gabrielas e o teu bebé também.
Regressemos pois ao tempo em que éramos
homens.
Gonçalo Fontes
1 comentário:
e que bom regresso é este ao oráculo!
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