quarta-feira, setembro 22, 2004

Os verdadeiros Ídolos

Quem encontrou a seguinte foto devia ser estatificado numa praceta de renome mundial. Deixo aqui um raro momento de caderneta dos anos 80. Uma prenda para os putos do meu tempo, para os que ainda se lembram dessa altura em que havia qualidade na televisão e na música nacional. Esta selecção não é uma montagem. Eles estavam juntos de facto, talvez numa tarde de Agosto de sardinhadas antes de um concerto num reboque de tractor. Ai o tempo que passou e que não volta mais...
Deixo uma pergunta no ar: Não vos assusta pensar que aqueles que vos trouxeram ao mundo e vos educaram durante anos a fio, usavam calças, saias, penteados, óculos ou meias como os deles e ainda por cima os tinham como Ídolos? G.F.

A seu tempo anunciarei um novo blog onde escreverei memórias da minha futura estadia em Itália. Parto dia 29 pela madrugada e o tempo que tenho dedicado a aparelhar-me tem dificultado a publicação de alguma coisa aqui. Não vou deixar de olear a maquinaria deste Oráculo, há e sempre haverá algo universal com que me embasbaque. Contudo, presumo que nos próximos meses a minha vida vai girar à volta dessa experiência única que é fazer Erasmus portanto parte dos meus sentires terão que ver com ela. E como desse sentir específico nascerá a necessidade de uma escrita mais ao jeito de um relato de viajante, assim o farei em local próprio. Voltarei aqui de tempos a tempos. Como sempre sem compromissos.

Peço também desculpa por ter deixado tanto tempo o último post que foi meramente um desabafo, e que não pretendeu levantar qualquer discussão ideológica, política, constitucional. Para terminar a polémica do "barco do aborto" deixo poesia na forma de uma refrão de música tradicional portuguesa pelo grupo "Quadrilha". Da sabedoria popular nascem refrões como este, que dedico ao Ministro da Guerra, Paulo Portas:

« O mar não é de ninguém
Ninguém é dono do mar
Nem aqueles que lá sabem navegar
»

quarta-feira, setembro 01, 2004

A vergonha de aqui.

Aqui não existe formação. Aqui não existe educação sexual nas escolas. Aqui não existem patrocínios para campanhas de planeamento familiar para os adolescentes. Aqui não existem audiências televisivas para programas informativos de serviço público sobre a prática abortiva: vê-se antes os “Morangos com Açúcar”. Aqui não se fomenta o estudo de teologia, ética, ciência. Aqui existe a informação do boca a boca, da amiga que disse e da que não disse. Aqui existe uma juventude desqualificada em que nos locais onde mais desqualificada é, mais desqualificada é a sua ascendência. Aqui existem mulheres a morrer na clandestinidade. Aqui existem mulheres a sofrer muito antes, durante e depois, durante anos, sempre. Aqui existem políticos que fazem da dor dos outros a sua bandeira, as suas cassetes, ao mesmo tempo que os seus antagónicos dissertam filosoficamente sobre o que é a vida e conseguem-na definir categoricamente sem qualquer dúvida. Aqui existe o julgamento público, a condenação legal e social, a criminalização humilhante de alguém que teve de tomar a decisão horrenda, por si só um fardo vitalício na sua consciência, a decisão de acabar com a vida de um futuro filho, num vão de escada, secretamente. Aqui existem parteiras desqualificadas a fazer fortunas e tráfico de pílulas abortivas ilegais que chegam a custar o ordenado anual de quem as compra. Aqui esconde-se um problema grave social e nacional com uma viagem a Badajoz. Aqui existe uma classe que mata recalcando o pecado em condições luxuosas e outra que morre desonrada na precariedade. Aqui fazem-se livremente orgias de sexo e cocaína em iates de pavilhão estrangeiro ao largo de Vilamoura, Sagres, Lagos, Funchal. Aqui existem contas de ministros em paraísos fiscais, esquecimentos de alguns euros em declarações de I.R.S., corrupção em Câmaras Municipais, derrapagens em obras públicas, escolas a fechar por falta de meios, professores recolocados 3, 4 vezes, universidades sem papel higiénico ou com tectos a cair, estádios de futebol novos e vazios, jaguares impunes a velocidades excessivas. Mas aqui existe dinheiro para que duas fragatas da armada, percam tempo com um barco de 6 tripulantes. Aqui presumem-se criminosos antes de ser praticado qualquer crime. Aqui são revistados pidescamente barcos, carros, na ânsia de encontrar 100 gramas de haxixe, pílulas do dia seguinte, cds piratas ou presuntos roubados, enquanto comandantes de bombeiros, policias fazem passeios de helicóptero patrocinados pelo contribuinte cumpridor. Aqui os centros das cidades são comprados com capital espanhol ao mesmo tempo que seis activistas holandeses põem em causa toda a soberania nacional. Aqui morre-se nas listas de espera dos hospitais, nas estradas, nas pontes, ao mesmo tempo que seis holandeses pacifistas colocam em risco toda a nossa saúde pública. Aqui não existe celeridade na justiça, seriedade nos meios de comunicação social, educação nas massas, dignidade na governação. Aqui deixou de existir progresso, o encontro com o que se quer de um mundo global, democrático, transparente, evoluído.

Aqui em Portugal neste momento existe a merda. A merda da Hipocrisia. Aqui em Portugal toda a gente vê a merda só que já não existe vergonha. Mas eu sinto-a. G.F.

diferenças

Ontem à noite presenciei um momento ilustrado, uma fotografia quotidiana, uma curtíssima metragem urbana que poderia pertencer a um catálogo qualquer sobre a temática das diferenças de classes. Enquanto uma senhora que é mãe de um toxicodependente que andou na minha escola, coxa e feia, carregava cansativamente 4 sacos pesados do minimercado Dia subindo a ladeira que passa à frente do prédio onde vivo, um qualquer vizinho meu confortavelmente esperava que 2 rapazes acabassem de descarregar a carrinha de compras ao domicílio do hipermercado Continente. Os dois ou três segundos que ela ficou a olhar para a carrinha falam por si. G.F.

a folha cinco

Nada consta

Falta-me a folha cinco
E entretanto a barba foi crescendo
a minha barba veio crescendo ferozmente
indiferente à morte de um ou outro amigo
às letras protestadas aos desgostos domésticos
às viagens lunares às convenções às lutas
Quando as coisas se erguem contra o homem
se eriçam agressivas contra ele
nem ao poeta basta o parapeito das palavras
Eu por exemplo homem de pouco tempo
trazido pelos dias aqui estou
Continuo a dizer: se alguma coisa há
que podias perder e ainda não perdeste
de que já a perdeste podes estar derto
Falta-me a folha cinco
Estou com a barba feita
Ainda este ano talvez em marienbad
eu vi mulheres curtidas pelos lutos
Mal de morte é o meu
em plena posição de pé às três da tarde
em meio do movimento do rossio
sentado à tarde no cinema em dias de semana
Já caem carnes já se perdem pêlos
já quase só me resta a devoção
lisboa certos dias um amigo às vezes
Poucas coisas importantes pensei durante a vida
uma mesa de sol em pleno inverno
um mar incontroverso alguns papéis
- continua a faltar-me a folha cinco -
pois apesar de tudo nada consta


Ruy Belo
"País Possível"
Editorial Presença

Videoclube

Descobrimos que afinal até não moramos numa terra muito atrasada quando nos vemos a discutir com o empregado do clube de vídeo o final perturbante do Dogville. G.F.

Nacionalidade



Entre as memórias que tenho de todas as viagens a Espanha uma é a música. Passando a fronteira só se ouve música espanhola. Maioritariamente música pop que traduzida não tem mais qualidade poética que trabalhos do nosso Toy ou da Micaela. Talvez o salero com que é temperada lhe confira mais qualidade. De facto deixa de se ouvir para lá de Elvas ou Valença música anglo-saxónica nas rádios e nas ruas. Os próprios nomes das bandas americanas e inglesas são traduzidos para castelhano. A verdade é que nem a própria juventude espanhola que conheci nas férias parece gostar de ouvir outra música que não a sua. Conhecem poucos nomes internacionais, mal trauteiam as canções mais conhecidas.

Antigamente julgava que isso era uma mistura de pouca abertura, excesso de orgulho nacional ou mesmo um pouco de ignorância. Numa das noites em que estive na praça da Catedral de Santiago de Compostela, naquela roda de amigos e guitarradas que fizemos depois do fogo de artifício monumental do Xacobeo, descobri que era algo mais que isso ou diferente disso. Quando perguntámos a um dos espanhóis se sabia cantar alguma música inglesa ele respondeu que não: «solo sei e solo me gusta cantar lo que sinto ca dientro, e lo que sinto es España.».
Descobri mais uma vez que nós em Portugal tristemente ou não, não somos só portugueses. G.F.