Quando não se tem nada para dizer, cita-se. Quando os poetas expressaram melhor que nós o que sentimos, resta-nos publicar e ler as suas palavras. Suas e nossas. Este poema, assim cru num blogue ou cantado por José Mário Branco fez-me descobrir há alguns anos uma Mulher, Natália Correia. Que todas as almas jovens censuradas se possam sempre queixar desta ou de outra qualquer outra maneira. G.F.
Queixa das almas jovens censuradas
Dão-nos um lírio e um canivete
e uma alma para ir à escola
mais um letreiro que promete
raízes, hastes e corola
Dão-nos um mapa imaginário
que tem a forma de uma cidade
mais um relógio e um calendário
onde não vem a nossa idade
Dão-nos a honra de manequim
para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos um prémio de ser assim
sem pecado e sem inocência
Dão-nos um barco e um chapéu
para tirarmos o retrato
Dão-nos bilhetes para o céu
levado à cena num teatro
Penteiam-nos os crâneos ermos
com as cabeleiras das avós
para jamais nos parecermos
connosco quando estamos sós
Dão-nos um bolo que é a história
da nossa historia sem enredo
e não nos soa na memória
outra palavra que o medo
Temos fantasmas tão educados
que adormecemos no seu ombro
somos vazios despovoados
de personagens de assombro
Dão-nos a capa do evangelho
e um pacote de tabaco
dão-nos um pente e um espelho
pra pentearmos um macaco
Dão-nos um cravo preso à cabeça
e uma cabeça presa à cintura
para que o corpo não pareça
a forma da alma que o procura
Dão-nos um esquife feito de ferro
com embutidos de diamante
para organizar já o enterro
do nosso corpo mais adiante
Dão-nos um nome e um jornal
um avião e um violino
mas não nos dão o animal
que espeta os cornos no destino
Dão-nos marujos de papelão
com carimbo no passaporte
por isso a nossa dimensão
não é a vida, nem é a morte
Natália Correia em "O Nosso Amargo Cancioneiro"
…respostas, críticas, crónicas, verdades infundadas, teorias, encontros, paródias, conspirações, chalaças, ramboiadas, lágrimas, venenos, gentes, vícios, valores, palavras, perguntas, solidões, comunhões, fobias, frenias, neopatologias, actualidades, mundialidades, portugalidades. Ou só insignificâncias…
quarta-feira, abril 28, 2004
terça-feira, abril 27, 2004
Este post é para o Dinis.
Queria aqui deixar um agradecimento público e um manifesto de afecto para ti, Dinis, rapaz novo, que és sem dúvida o meu, senão único, fan. Tenho pena que não sejas uma rapariga da minha idade, de corpo esbelto, olhos lindos e mente brilhante, mas enfim, não se pode ter tudo. A mim calhou-me um puto do Norte, com alguns problemas mentais benignos, incrivelmente chato mas com uma qualidade que admiro, a curiosidade por descobrir e perceber o mundo e os mundos que nos rodeiam. Apenas dizer-te ainda que isto é um mero blog que 5 ou 6 pessoas teimam em ler todos os dias, que não fiques já ai todo excitadinho ou de lágrima no olho por te ter mencionado (cultiva a tua heterosexualidade, por favor), que os teus 15 minutos de fama chegarão sem dúvida mais tarde noutras esferas mediáticas. Queria agradecer-te pelos elogios que me fazes embora na quase totalidade das vezes serem falaciosos e nas outras se deverem ao facto de sofreres das tais perturbações mentais. Por último agradecer-te publicamente por teres dado ao teu perro o nome que uso como nick. Isso é de loucos e ridículo mas são raras as vezes na vida que alguém demonstra uma prova de amizade tão pura. Espero nunca poder ter a oportunidade de te ouvir a chamar pelo cão e saber sequer que faças algum comentário sobre possíveis semelhanças do cão comigo. Sempre que precisares de alguma coisa, tenta os teus amigos primeiro, a tua família e depois, no fim, a mim, já que a minha ausência é quase certa. Não sou teu pai, não sou teu irmão, mas sou teu amigo, por isso quando eu desamparar da loja deixa mensagem, poderás ter, eventualmente, resposta. Olha sempre de frente os escolhos, não irás encalhar. Do teu amigo e não Guru, um gajo do Monte que te curte mesmo totil, G.F.
Num «abril e fechar de olhos»
Num «Abril e fechar de olhos», a liberdade fez-se adulta. Cresceram com ela os homens que a viveram. Ambos deixaram de ser crianças.
Analisamos hoje o passado ingénuo que vivemos aos olhos dos “grandes”. Fotografamos o ontem com as objectivas de tecnologia de ponta que inventámos hoje. Aos poucos, a nostalgia desses tempos felizes, do sonho, do amor incondicional pela libertação humana, deu lugar às frustrações de um povo que ainda vive com medo de cair da cadeira, de um povo que teima em vestir o véu nostálgico de um futuro transformado em beco difuso sem saída. Esquecemo-nos dessa madrugada em que crescer não era um receio, em que partir rumo à felicidade era tangível em cada bater de coração. Fomos crescendo, fomos esquecendo, fomos amargando. Fomo-nos tornando homens. Fomo-nos tornando mulheres. Depressa começámos todos a ser o que esperavam de nós. Depressa começámos a sonhar o que esperavam que sonhássemos. Deixámos de acreditar que amanhã ainda poderemos ser tudo. Ou porque há pouco amanhã, ou porque há pouca oportunidade para ser tudo, ou porque ser alguma coisa é suficiente e ser-se tudo é inqualificavelmente demagógico.
Psicanalisamos a criança que foi Abril para nos percebermos à esquerda e à direita, para instrospecionarmos o nossa evolução ainda tão parca. Esquecemo-nos que a criança Abril nasceu do breu de uma noite longa em que alguns, quase todos, não tiveram medo de fazer Amor. Esquecemo-nos que durante essa noite prolongada em que vivemos houve quem quisesse apenas entregar-se corpo a corpo, rasgar as fardas cinzentas, e fazer da pele salgada um novo mar onde partir desagrilhoados, satisfeitos, plenos. Nessas trevas que tanto tempo demoraram a findar, homens e mulheres, sem cores, nem fados, nem deuses, decidiram ter a criança que Abril nos trouxe. Amaram-se rompendo mordaças, erguendo as bandeiras invisíveis do singelo desejo de ser livre, esquecendo-se das frustrações capatazes, vencendo o medo, sempre o medo que diziam salvar da loucura subversiva. Nesse Inverno pavorosamente infindável, em que os amantes desoprimiram pulsações debaixo dos lençóis férteis de verdade, tecidos de felicidade virgem, concebeu-se a criança Abril.
E alguns pais dessa criança logo começaram a sonhar com o seu futuro, logo começaram a educa-la à sua maneira, logo quiseram que retirasse os cravos das baionetas, logo trataram de a moldar, dar-lhe números, parâmetros, protocolos, quilogramas burocráticos. Ofereceram-lhe rosas, martelos, rebuçados de laranja. Compraram-lhe fitas de Holywood, gravaram-lhe cassetes pop. Ensinaram como ler e escrever. Ampliaram-lhes os recreios de alcatrão e premiaram-lhe na puberdade com a identidade europeia por ter sido sempre bem comportadinha. Já licenciada andou de teleférico, descansou à sombra da pala de vários pavilhões. Cresceu, teve filhos. Sente-se importante, descobriu uma oportunidade única de ser efémera e futebolisticamente famosa internacionalmente. Essa criança, que agora adulta se maquilha, aparece nas revistas e dança desengonçadamente ao som do rock das belas vistas, não escondendo as suas perversões sexuais e o apetite pelo dourado.Tem rugas. Indisfarçáveis. À noite olha-se ao espelho. Lembra-se vagamente, por segundos, de quando era pequena e a pegaram ao colo, a levantaram no ar aos milhares e a beijaram chorando desalmadamente de alegria, gritando-lhe pelo nome. Relembra-se de quando ainda podia ser tudo, de quando partir era mais importante que chegar. O fado embala-a mas também a assusta. Chega a cama e deita-se esquecendo-se de ensinar aos seus filhos que ainda é possível ver em cada rosto igualdade. Chega a cama e deita-se esquecendo-se de contar aos seus filhos que não são as cruzes, os cifrões e as bandeiras que fazem com que cada dia tenha significado. Chega a cama e pensa nos orçamentos, abdominais, relatórios, compras, peelings que tem de fazer no dia seguinte. Talvez comece a pensar que os que não queriam o seu nascimento é que estavam certos ou pelo contrário comece a sonhar com uma alvorada de mudança, na infância de um novo império ainda por conquistar. Alguém lhe enviará uma mensagem para o telemóvel, que poderá ser de esperança ou de perpétua deriva. Amanha saber-se-à.Num «Abril e fechar de olhos» adormece. G.F.
Analisamos hoje o passado ingénuo que vivemos aos olhos dos “grandes”. Fotografamos o ontem com as objectivas de tecnologia de ponta que inventámos hoje. Aos poucos, a nostalgia desses tempos felizes, do sonho, do amor incondicional pela libertação humana, deu lugar às frustrações de um povo que ainda vive com medo de cair da cadeira, de um povo que teima em vestir o véu nostálgico de um futuro transformado em beco difuso sem saída. Esquecemo-nos dessa madrugada em que crescer não era um receio, em que partir rumo à felicidade era tangível em cada bater de coração. Fomos crescendo, fomos esquecendo, fomos amargando. Fomo-nos tornando homens. Fomo-nos tornando mulheres. Depressa começámos todos a ser o que esperavam de nós. Depressa começámos a sonhar o que esperavam que sonhássemos. Deixámos de acreditar que amanhã ainda poderemos ser tudo. Ou porque há pouco amanhã, ou porque há pouca oportunidade para ser tudo, ou porque ser alguma coisa é suficiente e ser-se tudo é inqualificavelmente demagógico.
Psicanalisamos a criança que foi Abril para nos percebermos à esquerda e à direita, para instrospecionarmos o nossa evolução ainda tão parca. Esquecemo-nos que a criança Abril nasceu do breu de uma noite longa em que alguns, quase todos, não tiveram medo de fazer Amor. Esquecemo-nos que durante essa noite prolongada em que vivemos houve quem quisesse apenas entregar-se corpo a corpo, rasgar as fardas cinzentas, e fazer da pele salgada um novo mar onde partir desagrilhoados, satisfeitos, plenos. Nessas trevas que tanto tempo demoraram a findar, homens e mulheres, sem cores, nem fados, nem deuses, decidiram ter a criança que Abril nos trouxe. Amaram-se rompendo mordaças, erguendo as bandeiras invisíveis do singelo desejo de ser livre, esquecendo-se das frustrações capatazes, vencendo o medo, sempre o medo que diziam salvar da loucura subversiva. Nesse Inverno pavorosamente infindável, em que os amantes desoprimiram pulsações debaixo dos lençóis férteis de verdade, tecidos de felicidade virgem, concebeu-se a criança Abril.
E alguns pais dessa criança logo começaram a sonhar com o seu futuro, logo começaram a educa-la à sua maneira, logo quiseram que retirasse os cravos das baionetas, logo trataram de a moldar, dar-lhe números, parâmetros, protocolos, quilogramas burocráticos. Ofereceram-lhe rosas, martelos, rebuçados de laranja. Compraram-lhe fitas de Holywood, gravaram-lhe cassetes pop. Ensinaram como ler e escrever. Ampliaram-lhes os recreios de alcatrão e premiaram-lhe na puberdade com a identidade europeia por ter sido sempre bem comportadinha. Já licenciada andou de teleférico, descansou à sombra da pala de vários pavilhões. Cresceu, teve filhos. Sente-se importante, descobriu uma oportunidade única de ser efémera e futebolisticamente famosa internacionalmente. Essa criança, que agora adulta se maquilha, aparece nas revistas e dança desengonçadamente ao som do rock das belas vistas, não escondendo as suas perversões sexuais e o apetite pelo dourado.Tem rugas. Indisfarçáveis. À noite olha-se ao espelho. Lembra-se vagamente, por segundos, de quando era pequena e a pegaram ao colo, a levantaram no ar aos milhares e a beijaram chorando desalmadamente de alegria, gritando-lhe pelo nome. Relembra-se de quando ainda podia ser tudo, de quando partir era mais importante que chegar. O fado embala-a mas também a assusta. Chega a cama e deita-se esquecendo-se de ensinar aos seus filhos que ainda é possível ver em cada rosto igualdade. Chega a cama e deita-se esquecendo-se de contar aos seus filhos que não são as cruzes, os cifrões e as bandeiras que fazem com que cada dia tenha significado. Chega a cama e pensa nos orçamentos, abdominais, relatórios, compras, peelings que tem de fazer no dia seguinte. Talvez comece a pensar que os que não queriam o seu nascimento é que estavam certos ou pelo contrário comece a sonhar com uma alvorada de mudança, na infância de um novo império ainda por conquistar. Alguém lhe enviará uma mensagem para o telemóvel, que poderá ser de esperança ou de perpétua deriva. Amanha saber-se-à.Num «Abril e fechar de olhos» adormece. G.F.
domingo, abril 11, 2004
Mr. Nick Cave
Para este Senhor e as suas sementes más qualquer palavra é parca. Aqui fica a letra de uma das suas canções, minhas, preferidas. Também porque é Páscoa. G.F.
God is in the house
We've laid the cables and the wires
We've split the wood and stoked the fires
We've lit our town so there is no
Place for crime to hide
Our little church is painted white
And in the safety of the night
We all go quiet as a mouse
For the word is out
God is in the house
God is in the house
God is in the house
No cause for worry now
God is in the house
Moral sneaks in the White House
Computer geeks in the school house
Drug freaks in the crack house
We don't have that stuff here
We have a tiny little Force
But we need them of course
For the kittens in the trees
And at night we are on our knees
As quiet as a mouse
For God is in the house
God is in the house
God is in the house
And no one's left in doubt
God is in the house
Homos roaming the streets in packs
Queer bashers with tyre-jacks
Lesbian counter-attacks
That stuff is for the big cities
Our town is very pretty
We have a pretty little square
We have a woman for a mayor
Our policy is firm but fair
Now that God is in the house
God is in the house
God is in the house
Any day now He'Il come out
God is in the house
Well-meaning little therapists
Goose-stepping twelve-stepping Tetotalltarianists
The tipsy, the reeling and the drop down pissed
We got no time for that stuff here
Zero crime and no fear
We've bred all our kittens white
So you can see them in the night
And at night we're on our knees
As quiet as a mouse
Since the word got out
From the North down to the South
For no-one's left in doubt
There's no fear about
If we all hold hands and very quietly shout
Hallelujah
God is in the house
God is in the house
Oh I wish He would come out
God is in the house
God is in the house
We've laid the cables and the wires
We've split the wood and stoked the fires
We've lit our town so there is no
Place for crime to hide
Our little church is painted white
And in the safety of the night
We all go quiet as a mouse
For the word is out
God is in the house
God is in the house
God is in the house
No cause for worry now
God is in the house
Moral sneaks in the White House
Computer geeks in the school house
Drug freaks in the crack house
We don't have that stuff here
We have a tiny little Force
But we need them of course
For the kittens in the trees
And at night we are on our knees
As quiet as a mouse
For God is in the house
God is in the house
God is in the house
And no one's left in doubt
God is in the house
Homos roaming the streets in packs
Queer bashers with tyre-jacks
Lesbian counter-attacks
That stuff is for the big cities
Our town is very pretty
We have a pretty little square
We have a woman for a mayor
Our policy is firm but fair
Now that God is in the house
God is in the house
God is in the house
Any day now He'Il come out
God is in the house
Well-meaning little therapists
Goose-stepping twelve-stepping Tetotalltarianists
The tipsy, the reeling and the drop down pissed
We got no time for that stuff here
Zero crime and no fear
We've bred all our kittens white
So you can see them in the night
And at night we're on our knees
As quiet as a mouse
Since the word got out
From the North down to the South
For no-one's left in doubt
There's no fear about
If we all hold hands and very quietly shout
Hallelujah
God is in the house
God is in the house
Oh I wish He would come out
God is in the house
Pascoela
Domingo de Aleluia em directo da TVI. Morte e Ressurreição de Cristo, velas a 0,5 euros. O raio do estúpido coelho e a sua distribuição de ovos. Operação Páscoa: 4 mortos nas estradas. Kinder supresa, esta semana no sítio do costume.
A actual Páscoa é – me ridícula. Um pretexto para as marcas de chocolate, amêndoas e os T2 de Albufeira facturem aquilo que não poderão noutras alturas. Uma festa da Igreja que tantos desejam uns aos outros de “feliz”. Mas o que é uma Páscoa feliz? Porque não nos limitamos a dizer boas férias, boa praia, boa viagem? Uns agnósticos, outros apáticos, vamo-nos ressuscitando sim, mas sempre na fuga para a frente, de tanga, trabalhando o bronzeado artificial e rápido, fingindo que somos tropicais invadindo praias, disfarçando-nos de adinheirados em pistas de ski sintéticas. Serve a Páscoa de pretexto para muitos verem as famílias que esquecem durante todo o ano. Para falar das vidas de cada um que tornarão a repetir em estórias no próximo Natal.
Mas há quem se lembre de Jesus. Há quem se lembre do dele e dos seus calvários: um rol de 3 ou 4 Cristos por canal de televisão, sempre de barba bem tratada e olhos claros, trata de fazer esse serviço de memorização. Os que se dizem praticantes mas muitos já sem fé, esses, multiplicam-se pelas procissões cadenciadas ao ritmo obsoleto da tradição, do rito. Repetem-se evangelhos, palavras sagradas. Os coros de velhas cantam estridentemente Aleluia! Aleluia!. «Amarmo-nos uns aos outros como eles nos amou». Como os radicais xiitas amam os sunitas, como Yasser ama Sharon, como Bush ama o Protocolo de Kioto e o desarmamento nuclear americano, como o Bloco de Esquerda ama o Portas, o Partido Comunista a liberdade de expressão, como o Le Pen ama os magrebinos, como a Britney Spears ama a virgindade.
Esta metade, a cínica, vai fazendo as manchetes. Porque a outra metade de gente que ainda aqui vivemos felizes não fazemos notícia. A condição voyeur humana, a masturbação da dor vizinha, o esgravatar o sofrimento dos pares, o hipnotismo pelas fustigações alheias, o deslumbre pela decadência do próximo, qual ritual neodarwiano psicológico de sobrevivência, esses sim fazem as parangonas, headlines, punchlines, highlits e exclusives do nosso bombardeamento informativo quotidiano. A outra metade que apenas se propõe a hiperbolizar a boa acção entre os povos não é falada. Porque dizem os novos sábios que o Homem é naturalmente mau e condenado ao fracasso, que a competição é vantajosa em relação à cooperação. E esta vai sendo cada vez menos noticia. E nós vamos sendo cada vez menos notícia e cada vez menos. Porque somos utópicos e pouco rentáveis. Porque ajudar sem esperar recompensa não nos dá cartões gold. E assim alguns de nós vamos existindo, acreditando mais no Homem, não em Deus pois acho que o seu único e sólido argumento é o de não existir. Ou mesmo acreditando Nele, e já que o inventámos à medida das explicações de quem somos e dos sonhos de quem seremos, pedimos que Ele acredite na nossa redenção, no «escapar da escravidão mental». Usando-o na tentativa de esquecer que estamos abandonados, entregues à procura de algo ou alguém que nos faça sentir pertença. Mesmo sabendo que a Humanidade acaba por tragar aqueles que mais a tentam perceber e amar, vamos existindo assim nesse enigma ao mesmo tempo agonizante e reconfortante: Teremos um dia a Paz , a Liberdade global dos Povos? Se realmente podemos mudar-nos e mudar os outros, só através da acção, através da Arte, da produção de Cultura, do Criar, do poder da reificação humana que nos é inerente, é que realmente poderemos descobrir, no fim, que foi ou não possível construir essa mudança. Voltaire, Ghandi, Luther King entre milhares de nomes famosos e anónimos acreditaram. Jesus acreditou em nós. Morreu por uma causa. Talvez nós possamos, mas também temos de acreditar. Falta-nos, mais que a fé, a vontade de combater a inércia de descobrir que podemos vencer, podemos de facto mudar. Eu hoje poderia ter ganho o totoloto. Sonhei com o que faria com 1 milhão e 400 mil contos, troquei listas de compras imaginárias com uma pessoa que cepticamente me dizia que é mesmo muito remotamente provável acertar o 6. Mas a verdade é que nem eu nem ela alguma vez preenchemos um boletim. G.F.
A actual Páscoa é – me ridícula. Um pretexto para as marcas de chocolate, amêndoas e os T2 de Albufeira facturem aquilo que não poderão noutras alturas. Uma festa da Igreja que tantos desejam uns aos outros de “feliz”. Mas o que é uma Páscoa feliz? Porque não nos limitamos a dizer boas férias, boa praia, boa viagem? Uns agnósticos, outros apáticos, vamo-nos ressuscitando sim, mas sempre na fuga para a frente, de tanga, trabalhando o bronzeado artificial e rápido, fingindo que somos tropicais invadindo praias, disfarçando-nos de adinheirados em pistas de ski sintéticas. Serve a Páscoa de pretexto para muitos verem as famílias que esquecem durante todo o ano. Para falar das vidas de cada um que tornarão a repetir em estórias no próximo Natal.
Mas há quem se lembre de Jesus. Há quem se lembre do dele e dos seus calvários: um rol de 3 ou 4 Cristos por canal de televisão, sempre de barba bem tratada e olhos claros, trata de fazer esse serviço de memorização. Os que se dizem praticantes mas muitos já sem fé, esses, multiplicam-se pelas procissões cadenciadas ao ritmo obsoleto da tradição, do rito. Repetem-se evangelhos, palavras sagradas. Os coros de velhas cantam estridentemente Aleluia! Aleluia!. «Amarmo-nos uns aos outros como eles nos amou». Como os radicais xiitas amam os sunitas, como Yasser ama Sharon, como Bush ama o Protocolo de Kioto e o desarmamento nuclear americano, como o Bloco de Esquerda ama o Portas, o Partido Comunista a liberdade de expressão, como o Le Pen ama os magrebinos, como a Britney Spears ama a virgindade.
Esta metade, a cínica, vai fazendo as manchetes. Porque a outra metade de gente que ainda aqui vivemos felizes não fazemos notícia. A condição voyeur humana, a masturbação da dor vizinha, o esgravatar o sofrimento dos pares, o hipnotismo pelas fustigações alheias, o deslumbre pela decadência do próximo, qual ritual neodarwiano psicológico de sobrevivência, esses sim fazem as parangonas, headlines, punchlines, highlits e exclusives do nosso bombardeamento informativo quotidiano. A outra metade que apenas se propõe a hiperbolizar a boa acção entre os povos não é falada. Porque dizem os novos sábios que o Homem é naturalmente mau e condenado ao fracasso, que a competição é vantajosa em relação à cooperação. E esta vai sendo cada vez menos noticia. E nós vamos sendo cada vez menos notícia e cada vez menos. Porque somos utópicos e pouco rentáveis. Porque ajudar sem esperar recompensa não nos dá cartões gold. E assim alguns de nós vamos existindo, acreditando mais no Homem, não em Deus pois acho que o seu único e sólido argumento é o de não existir. Ou mesmo acreditando Nele, e já que o inventámos à medida das explicações de quem somos e dos sonhos de quem seremos, pedimos que Ele acredite na nossa redenção, no «escapar da escravidão mental». Usando-o na tentativa de esquecer que estamos abandonados, entregues à procura de algo ou alguém que nos faça sentir pertença. Mesmo sabendo que a Humanidade acaba por tragar aqueles que mais a tentam perceber e amar, vamos existindo assim nesse enigma ao mesmo tempo agonizante e reconfortante: Teremos um dia a Paz , a Liberdade global dos Povos? Se realmente podemos mudar-nos e mudar os outros, só através da acção, através da Arte, da produção de Cultura, do Criar, do poder da reificação humana que nos é inerente, é que realmente poderemos descobrir, no fim, que foi ou não possível construir essa mudança. Voltaire, Ghandi, Luther King entre milhares de nomes famosos e anónimos acreditaram. Jesus acreditou em nós. Morreu por uma causa. Talvez nós possamos, mas também temos de acreditar. Falta-nos, mais que a fé, a vontade de combater a inércia de descobrir que podemos vencer, podemos de facto mudar. Eu hoje poderia ter ganho o totoloto. Sonhei com o que faria com 1 milhão e 400 mil contos, troquei listas de compras imaginárias com uma pessoa que cepticamente me dizia que é mesmo muito remotamente provável acertar o 6. Mas a verdade é que nem eu nem ela alguma vez preenchemos um boletim. G.F.
sábado, abril 10, 2004
Tempos Modernos
«Era uma vez um casal de piolhos que conseguiu instalar-se numa bonita cabeleira. Com o tempo a trupe cresceu, conquistou outras cabeças. E não tardou assumiu o poder. Ninguém mais se coçou.» Augusto Baptista in O caçador de luas
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