domingo, abril 11, 2004

Pascoela

Domingo de Aleluia em directo da TVI. Morte e Ressurreição de Cristo, velas a 0,5 euros. O raio do estúpido coelho e a sua distribuição de ovos. Operação Páscoa: 4 mortos nas estradas. Kinder supresa, esta semana no sítio do costume.

A actual Páscoa é – me ridícula. Um pretexto para as marcas de chocolate, amêndoas e os T2 de Albufeira facturem aquilo que não poderão noutras alturas. Uma festa da Igreja que tantos desejam uns aos outros de “feliz”. Mas o que é uma Páscoa feliz? Porque não nos limitamos a dizer boas férias, boa praia, boa viagem? Uns agnósticos, outros apáticos, vamo-nos ressuscitando sim, mas sempre na fuga para a frente, de tanga, trabalhando o bronzeado artificial e rápido, fingindo que somos tropicais invadindo praias, disfarçando-nos de adinheirados em pistas de ski sintéticas. Serve a Páscoa de pretexto para muitos verem as famílias que esquecem durante todo o ano. Para falar das vidas de cada um que tornarão a repetir em estórias no próximo Natal.

Mas há quem se lembre de Jesus. Há quem se lembre do dele e dos seus calvários: um rol de 3 ou 4 Cristos por canal de televisão, sempre de barba bem tratada e olhos claros, trata de fazer esse serviço de memorização. Os que se dizem praticantes mas muitos já sem fé, esses, multiplicam-se pelas procissões cadenciadas ao ritmo obsoleto da tradição, do rito. Repetem-se evangelhos, palavras sagradas. Os coros de velhas cantam estridentemente Aleluia! Aleluia!. «Amarmo-nos uns aos outros como eles nos amou». Como os radicais xiitas amam os sunitas, como Yasser ama Sharon, como Bush ama o Protocolo de Kioto e o desarmamento nuclear americano, como o Bloco de Esquerda ama o Portas, o Partido Comunista a liberdade de expressão, como o Le Pen ama os magrebinos, como a Britney Spears ama a virgindade.

Esta metade, a cínica, vai fazendo as manchetes. Porque a outra metade de gente que ainda aqui vivemos felizes não fazemos notícia. A condição voyeur humana, a masturbação da dor vizinha, o esgravatar o sofrimento dos pares, o hipnotismo pelas fustigações alheias, o deslumbre pela decadência do próximo, qual ritual neodarwiano psicológico de sobrevivência, esses sim fazem as parangonas, headlines, punchlines, highlits e exclusives do nosso bombardeamento informativo quotidiano. A outra metade que apenas se propõe a hiperbolizar a boa acção entre os povos não é falada. Porque dizem os novos sábios que o Homem é naturalmente mau e condenado ao fracasso, que a competição é vantajosa em relação à cooperação. E esta vai sendo cada vez menos noticia. E nós vamos sendo cada vez menos notícia e cada vez menos. Porque somos utópicos e pouco rentáveis. Porque ajudar sem esperar recompensa não nos dá cartões gold. E assim alguns de nós vamos existindo, acreditando mais no Homem, não em Deus pois acho que o seu único e sólido argumento é o de não existir. Ou mesmo acreditando Nele, e já que o inventámos à medida das explicações de quem somos e dos sonhos de quem seremos, pedimos que Ele acredite na nossa redenção, no «escapar da escravidão mental». Usando-o na tentativa de esquecer que estamos abandonados, entregues à procura de algo ou alguém que nos faça sentir pertença. Mesmo sabendo que a Humanidade acaba por tragar aqueles que mais a tentam perceber e amar, vamos existindo assim nesse enigma ao mesmo tempo agonizante e reconfortante: Teremos um dia a Paz , a Liberdade global dos Povos? Se realmente podemos mudar-nos e mudar os outros, só através da acção, através da Arte, da produção de Cultura, do Criar, do poder da reificação humana que nos é inerente, é que realmente poderemos descobrir, no fim, que foi ou não possível construir essa mudança. Voltaire, Ghandi, Luther King entre milhares de nomes famosos e anónimos acreditaram. Jesus acreditou em nós. Morreu por uma causa. Talvez nós possamos, mas também temos de acreditar. Falta-nos, mais que a fé, a vontade de combater a inércia de descobrir que podemos vencer, podemos de facto mudar. Eu hoje poderia ter ganho o totoloto. Sonhei com o que faria com 1 milhão e 400 mil contos, troquei listas de compras imaginárias com uma pessoa que cepticamente me dizia que é mesmo muito remotamente provável acertar o 6. Mas a verdade é que nem eu nem ela alguma vez preenchemos um boletim. G.F.

Sem comentários: