quarta-feira, março 24, 2004

Conversas. Sem o Nuno.

Agora que tudo está mais sereno volto ao Oráculo. E hoje volto simplesmente porque preciso mesmo. Quero acima de tudo que as minhas memórias dos últimos dias sejam aqui fotografadas. Para que não me esqueça do que senti se o destino me trouxer nova dor. Para me acalmar com alguma resposta que temos de ter mesmo nunca encontrando. Achei que agora era a melhor altura para falar da morte do Nuno. E dizer “morte do Nuno” é a frase mais estranha que escrevi. A frase mais seca. A frase mais fria. A frase mais absurda.
O Nuno não era meu amigo. Mas eu gostava do Nuno e acho que ele de mim. Ele disse-o algumas vezes, falou do meu futuro, sorrimos ambos do traçar de projectos para amanhã. Cumprimentava-me com um “grande Pintas!” e eu ficava feliz. Nesse momento o Nuno deixava de ser a pessoa fria e calculista que sempre duvidei serem mesmo traços da sua personalidade. Nesse momento sentia que o Nuno era um de nós, sentia também nele a fraternidade que se foi criando entre os (poucos) rapazes do nosso curso. O Nuno gostava da minha camisola dos escuteiros e perguntava-me sempre com interesse coisas dos escuteiros. Da sua organização, da estrutura, da dinâmica do grupo. Era das raras vezes em que falava com o Nuno. Das outras que estivemos juntos limitava-me a ouvi-lo. A absorver toda a cultura, todo o saber que ele conseguia transmitir em cada frase. O Nuno com a sua genialidade tornou-me ainda mais humilde. Nunca conseguiria ter o brilhantismo do Nuno. Ajudou-me a perceber os meus limites mas ajudou-me a alarga-los. Com ele aprendi. Verdadeiramente aprendi e era alguém em quem muitas vezes pensava. Associava e associo ainda a muitas coisas que oiço todos os dias. Falar com o Nuno, ou ouvi-lo, era discutir ideias, planar sobre pensamentos, dissertar sobre paradigmas. Mais que aprender novos conceitos era ter um colega que resumia toda uma cultura, todos os autores, todos os pensadores. O Nuno era um colega que em si encerrava muitos professores. De Estética, de Retórica, de História, de Geografia, de Psicologia Social, de Religião, enfim de tudo o que o Ser Humano se pergunta. O Nuno ensinava-nos tudo. E eu que nunca quis que ele se calasse estou agora aqui a escrever, depois do seu Fim.
O Nuno não me faz falta emocionalmente. Não quero parecer hipócrita. Como já disse a nossa relação baseava-se apenas nas tertúlias que eu e tantos tivemos com ele. O Nuno faz-me falta na construção do Pensamento, na procura das respostas ao comportamento humano que tantas vezes não encontrei nas aulas. Com o Nuno, bastava estar no bar para as ter. Uma mesa, uma hora que valia mais que quase todo um semestre de conteúdos programáticos. Fascinava-me descobrir o mundo tão particular dele. Fascinava-me a sua decadência fina, o seu snobismo, o seu sorriso cínico e superior sobre as coisas mundanas. O Nuno assustava-me porque talvez o que nos é diferente, assuste. O Nuno não era mesmo um de nós e ele sabia da sua inadaptação a esta pequenez de vida em que estamos metidos. Interessavam-lhes os pormenores de luxo, a erudição das coisas Belas. Foi alguém que provavelmente a maioria de nós nunca terá oportunidade de conhecer. A primeira recordação que tenho dele é a de quando, nas praxes, nos falava do perfume característico do pinho dos fósforo da Davidoff. Saboreava os prazeres mais refinados e ao mesmo tempo vivia desprendido. Das coisas, de nós, dele.
A única consolação que tenho no meio disto. E também me é tão ridículo procurar serenidade, é a de ter dito frente a frente, que gostava dele. Mesmo conscientemente bêbado, disse-lho, tal como disse a todos de quem gosto e que hoje mais que nunca tenho medo que me desapareçam. E que também tenho medo de desaparecer e deixar alguém no estado em que estamos. Disse-lhe o que sentia e, ao menos isso: enquanto o Nuno existiu soube-o de mim. Gostava que ele tivesse sentido esse gostar. Nunca o saberei.
Não acredito que o Nuno esteja em alguma parte. O Nuno deixou de existir. Como quis. Mas nós existimos e os amigos especialmente, a família estão a sofrer. È com eles que lembramos o Nuno, parte das nossas vidas. O Nuno morreu por vontade própria mas os que tínhamos a vontade de o ter, ainda nos perguntamos porquê. Porquê a falta de amor por esta vida?; porquê agora?; porque é que não conseguimos prever?… Mais uma vez e também no fim, somos sempre nós que continuamos a perguntar. O Nuno, pelo contrário, sempre soube responder.
Mas mesmo morrendo, como quis, não nos morreu. Foi como se tivesse ido de férias para a neve e voltasse amanhã. Chegasse ao bar e começasse a falar eloquentemente de Camus ou de sexo oral, de economia ou do ponto “g”. Mesmo sabendo que a viagem foi feita irreversivelmente isto tudo surge-nos como um sonho esquisito. Como se a notícia que me deram “Já sabes o que aconteceu?” tivesse sido argumento de um pesadelo antes de acordar para mais uma tarde de aulas, de conversas no bar. Conversas com o Nuno.
É tudo frio, absurdo e estranho. A sua morte, o funeral, a falta de amparo que todos sentimos. Nos últimos dias senti-me pequeno. Sem protecções perante esta fatalidade que é perdermos alguém que conhecemos. E se me sinto assim hoje, imagino quem o amava, os avós, os pais, os amigos. A estes, em particular aos que também são meus, ao Francisco e ao José Miguel queria aqui deixar aqui o meu apoio. Mais que a minha dor e o meu luto pela morte do vosso amigo deixo aqui uma palavra de coragem e uma vontade de os abraçar como raramente sinto. Porque enquanto não chorarmos tudo o que houver para chorar, precisamos uns dos outros. Nem que seja para descobrirmos que somos mesmo uns sentimentalistas de merda, que não falamos só dos golões do Sokota, da lei de financiamento do ensino superior ou das generosas mamas da Guida. Pois o que é que agora nos resta fazer? Viver. G.F.


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