Peço desculpa por não andar a escrever mais que algumas linhas. Por não ter qualquer fio condutor para um debate intelectual sobre o quotidiano. Não descortinar palavras sobre os pequenos nadas que vamos vivendo. Continuo embasbacado, quero apenas contemplar. Aprendo muito mais quando oiço do que quando falo, portanto resta-me entregar às palavras belas de outros que viveram e souberam tão bem e tão mais que eu. Porque mais uma vez mais vale estar calado e julgarem que somos mesmo estúpidos que pegar no teclado e acabar com todas as dúvidas. Assim, aqui fica este poema que descobri através da T.S.F. numa emissão mítica ao jeito de Orson Welles e a sua "Guerra dos Mundos". Imaginem o poema como se estivesse a ser narrado por um repórter, a notícia fosse realmente verdadeira, réus, testemunhas, tribunais, carrascos, ganhassem vida e falassem aos microfones. Com a entoação que quiserem, meditando na beleza da notícia, aqui vos deixo um poema muito conhecido, que me faz simplesmente chorar... G.F.
A invenção do amor
Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares, à porta dos edifícios públicos, nas janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádio e detergentes
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da nossa esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amor.
Em letras enormes do tamanho
do medo da solidão da angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com carácter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana.
Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e fome de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio. A descoberta. A estranheza
de um sorriso natural e inesperado.
Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna.
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo.
Um homem e uma mulher um cartaz denuncia
colado em todas as esquinas da cidade
A rádio já falou. A TV anuncia
iminente a captura. A policia de costumes avisada
procura os dois amantes nos becos e nas avenidas.
Onde houver uma flor rubra e essencial
é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta fechada para o mundo
É preciso encontrá-los antes que seja tarde.
Antes que o exemplo frutifique. Antes
que a invenção do amor se processe em cadeia.
Há pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos.
Chamem as tropas aquarteladas na província!
Convoquem os reservistas os bombeiros os elementos da defesa passiva
Todos decrete-se a lei marcial com todas as consequências!
O perigo justifica-o. Um homem e uma mulher
conheceram-se amaram-se perderam-se no labirinto da cidade.
É indispensável encontrá-los dominá-los convencê-los
antes que seja tarde
e a memória da infância nos jardins escondidos
acorde a tolerância no coração das pessoas.
Fechem as escolas. Sobretudo
protejam as crianças da contaminação.
Uma agência comunica que algures ao sul do rio
um menino pediu uma rosa vermelha
e chorou nervosamente porque lha recusaram.
Segundo o director da sua escola é um pequeno triste inexplicavelmente dado aos longos silêncios e aos choros sem razão.
Aplicado no entanto. Respeitador da disciplina.
Um caso típico de inadaptação congénita disseram os psicólogos
Ainda bem que se revelou a tempo. Vai ser internado
e submetido a um tratamento especial de recuperação.
Mas é possível que haja outros É absolutamente vital
que o diagnóstico se faça no período primário da doença
E também que se evite o contágio com o homem e a mulher
de que fala no cartaz colado em todas as esquinas da cidade.
Está em jogo o destino da civilização que construímos
o destino das máquinas das bombas de hidrogénio das normas de discriminação racial
o futuro da estrutura industrial de que nos orgulhamos
a verdade incontroversa das declarações políticas.
...
É possível que cantem
mas defendam-se de entender a sua voz. Alguém que os escutou
deixou cair as armas e mergulhou nas mãos o rosto banhado de lágrimas.
E quando foi interrogado em Tribunal de Guerra
respondeu que a voz e as palavras o faziam feliz
lhe lembravam a infância Campos verdes floridos
Água simples correndo A brisa das montanhas.
Foi condenado à morte é evidente. É preciso evitar um mal maior.
Mas caminhou cantando para o muro da execução
foi necessário amordaçá-lo e mesmo desprendia-se dele
um misterioso halo de uma felicidade incorrupta.
...
Procurem a mulher o homem que num bar
de hotel se encontraram numa tarde de chuva.
Se tanto for preciso estabeleçam barricadas
senhas, salvo-condutos, horas de recolher
censura prévia à Imprensa, tribunais de excepção
Para bem da cidade, do país, da cultura,
é preciso encontrar o casal fugitivo
que inventou o amor com carácter de urgência.
Os jornais da manhã publicam a notícia
de que os viram passar de mãos dadas sorrindo
numa rua serena debruada de acácias.
Um velho sem família a testemunha diz
ter sentido de súbito uma estranha paz interior
uma voz desprendendo um cheiro a primavera
o doce bafo quente da adolescência longínqua.
Daniel Filipe, 1961
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