domingo, setembro 14, 2003

O meu tempo

Há uns largos anos a minha Professora da primária ensinou-me que o ponteiro maior indicava os minutos e o menor as horas. Também havia um, mais fininho, que indicava os segundos e rodava mais rapidamente que os outros. Então o tempo começou para mim a exercer um fascínio e a existir. O meu colega de carteira, o Jepas, tinha naquela altura um “flik flak” e encontrávamo-nos volta e meia a ver as horas. Era um relógio soberbo pensava eu. Nesse tempo em que gostamos do tempo, passava tudo devagar. Sabíamos que as aulas acabavam às 18h30, fazíamos a contagem decrescente para o toque mas não havia nenhuma vontade de ir embora. A campainha tocava porque tinha de tocar aquela hora. Tínhamos relógio mas os dias começavam quando nos iam acordar para levar ao colégio, almoçávamos quando nos chamavam, deitávamo-nos quando acabava o Roque Santeiro. Lembro-me da primeira directa que fiz, com os meus pais e um grupo dos seus amigos, tinha 8 ou 9 anos. Perguntava de 15 em 15 minutos “Já é directa? Já é directa?”Queria insistentemente que o tempo passasse. Fazia nesses tempos contas, tentava ver quantos minutos faltavam para o ano 2000, quantas horas faltariam até fazer 16 anos, quantos segundos até ser um “grande” com 18. Hoje gostava que esse ponteiro mais fininho rodasse mais devagarinho. Hoje sinto-me crescer e ainda não tive tempo para descobrir se gosto.

No 6º ano fui a Ceuta e os meus pais compraram-me o meu primeiro relógio digital. Um CASIO, com luzinha amarela ao canto. Já podia ver as horas de noite, já podia descobrir a que velocidade corria os 100 metros. Aprendi então que havia ainda unidades mais pequenas que os segundos. Estraguei a luz, emperrei o cronómetro mas o relógio durou-me 4 anos. Está hoje abandonado, sem pilha, numa gaveta de memórias. Depois de um G-shock acebolado desisti de usar relógio.

Faz hoje um ano que voltei a adornar o pulso. Um swatch. Está constantemente a atrasar-se. Devo dizer que gosto. Não me dita as suas leis e engana os que me querem responsabilizado, servo do tempo. Não é uma “algema” como disse uma vez em entrevista o pai do primeiro satélite português. E foi depois de ouvir essa entrevista de um Físico “humano” e de ler Alan Lightman, que me juntei ao mundo dos que não se fanatizam pelo tempo maquinal, físico, mecânico. Foi então que percebi a existência de dois mundos mais antagónicos que a Esquerda ou Direita, mais subtis que o Benfiquismo ou do Sportinguismo. Mais conflituosos que ser crente ou ateu.

Alguns de nós vivemos num mundo onde o tempo é rígido, escrupuloso, calculador. Muitos de vocês levantam-se todos os dias às 7h30 da manhã, dizem olá ao vizinho às 8h, bebem um café às 9horas, vão à casa de banho às 11h, almoçam às 13h30. Jantam às 19h30, assistem ao telejornal das 20h, fazem amor entre as 23h e as 23h15. Poe o “on” do despertador às 23h30, adormecem às 23h32. Trabalham 40 horas por semana, fazem jogging à segunda, quarta e sexta, compram o jornal todos os domingos. Fustigam-se quando chegam atrasados 3 minutos a algum compromisso.

Eu tal como também muitos de vocês preferimos o ritmo dos nossos corações, ouvimos os sinos das Igrejas pensando na música que toca e não que horas serão nesse preciso momento. Comemos quando temos fome, acaba-nos o dia quando adormecemos, fazemos amor quando desejamos. Sabemos que o tempo é necessário à organização e disciplina, para que sejam entregues projectos no prazo certo. Para que a rotina necessária exista. Mas mais que isso, para nós o tempo apenas são impulsos, pulsões. Para nós o tempo carregado de stress avança ainda com mais dificuldade. Para nós quando o nosso clube perde a 10 minutos do fim, o tempo passa num ápice, quando ganha apenas por um e é pressionado, o tempo torna-se lento, agoniante. Para nós, quando um amigo teve um acidente e está no hospital e não sabemos notícias, quando esperamos o nascimento de um filho, um minuto veste-se de século. Para nós quando o Benfica marca um golo, quando nos elogiam, quando festejamos, quando nos sentimos completos nos braços de um amor, o tempo forma-se flecha. Para nós o tempo não nos dita as leias biológicas. A nossa tristeza não se faz de substâncias transportadas ao micro - segundo para cerebelo. A nossa existência, faz-se, sabendo essas regras mecânicas, mas iludindo-as, esquecendo-as, transformando-as em magia solta. Para nós as roldanas e alavancas químicas, físicas, biológicas, existem mas tornam-se coloridas, partem-se, desmontam-se, aceleram sem explicação. Chiam, explodem, derretem, encravam, fazem com que o mesmo beijo possa ser ao mesmo tempo eternamente efémero.

Hoje volto a por um relógio, são 16h32 minutos, na realidade 17h44 em Lisboa, 16h44 em São Miguel, menos umas quantas horas no Pantanal, mais umas quantas em Dili. Saio para compromissos à hora marcada e perguntando de quando a quando, resituando-me no outro mundo instituído, que horas são ? G.F.C.


- Comentários, dúvidas, incertezas, ofertas monetárias, sermões, correcções, propostas irrecusáveis, cabalas, feedbacks, basbaquices quotidianas, tudo isso para: oracludosbasbaks@mail.pt Critica.

Sem comentários: