Talvez seja a primeira vez que fique triste pela morte de um estranho público. Digo público porque aquele que nos acenava era de uma generosidade que, embora anónima, nos afastava do privado e nos fazia sorrir para ele e para a nossa cidade.
Numa capital onde muitas vezes nos ultrapassamos sem ver caras e onde criamos ideias difusas de multidões associadas a esta ou aquela esquina costumeira, o Senhor do Adeus era alguém que nos trazia familiaridade. Porque não era louco e porque acenava dizendo adeus à sua e à nossa solidão, ele era-nos importante. Era-nos importante porque decidiu estar ali e fazê-lo, repetidamente, dia após dia, ano após ano.
Há poucas pessoas que se tornam ícones anónimos de uma cidade: o senhor do adeus era, desde há muito tempo, uma estátua viva do Saldanha. Reconhecido de longe, reconhecido em toda a parte. Parei há uns anos, depois de uma ida ao cinema sozinho, junto do Senhor do Adeus, tratando-o como Senhor do Adeus. Falámos sobre cinema e sobre solidão, sobre artrites nas mãos e sobre despedidas. Mais que a conversa guardo a ternura com que muita gente parava o carro e, sem gozar, apenas acenava, apitava, lhe perguntava se precisava de alguma coisa. Gente que sobretudo conduzia sozinha. Ele interrompia a conversa que estava a ter comigo para simplesmente se despedir saudando-os. Como se nunca o tivesse feito na última década vezes sem conta. Espantava-me a sua capacidade de despertar sorrisos de forma tão simples. Às vezes até mesmo a altas horas de madrugada. Sorrisos de pessoas que invariavelmente também faziam parte de noites solitárias alfacinhas e que ali tinham a cumplicidade de um estranho mas tocante aceno.
Algumas vezes imaginei-o porteiro simpático de quem ia para o reboliço do Marquês, para os hotéis da Liberdade ou para a boémia do Bairro Alto. Parecia que ao dizer-nos adeus nos bem-dizia: “Adeus, façam favor de continuar Lisboa”.
Talvez fosse isso o mais tocante e o que me faz entristecer hoje. É que tal como o fado do Marco Rodrigues que há 3 semanas tinha estado a ouvir, tal como nesse “homem do Saldanha” é cantado: o senhor do adeus não nos dizia adeus, dizia-nos olá. Os que o julgavam louco e troçavam nunca entenderão que este olá nos tocava. Talvez esses precisassem mais dele que nós.
Vi o Senhor do Adeus a semana passada, à saída do Bairro, no Príncipe Real. Sorrimos por ele continuar ali como que teletransportado do Saldanha tal e qual personagem de um filme que vem só fazer a marcação indelével de um qualquer manifesto. De uma manifesto de coragem quase quixoteana ou simplesmente alguém real que gostava de existir em várias das nossas colinas e de fazer essa entrega à sua cidade, aos seus lisboetas. Disse-lhe da janela “boa noite”, ele sorriu-nos, nós acenámos.
Espanta-me que tenha dito mesmo Adeus o Senhor do Adeus. Estou triste porque ele era uma parte da nossa Lisboa que será contada aos mais novos em jeito de lenda urbana. Uma espécie de McDrive onde não era preciso pedir nada por um cumprimento em troca, numa cidade em crescente comprimento e tão afastada de cumprimentos.
Gostava que eles soubessem que o Senhor, antes do Adeus, existiu, viveu só e morreu sozinho. Foi humano e o que se escreverá sobre ele ultrapassará o seu singular içar da mão que era apenas o que bastava para prosseguirmos Lisboa.
Amanhã o Saldanha não será o mesmo Saldanha e nós teremos ainda menos gente que nos diga Adeus como uma despedida deve apenas ser: perfumada com um sorriso e travestida de um ténue travo a "olá de novo".
Adeus Senhor do Adeus.