quinta-feira, fevereiro 12, 2004

Namoro

Fausto, o cantor maldito, assombra-me pela sua genialidade musical esquecida. E talvez por ser pouco falado ainda mais me fascine. Quando achamos que os autores são só nossos, ou de apenas algum grupo restrito de pessoas, sentimos que eles escrevem de facto para nós ou que nós seríamos capazes de escrever o mesmo, naquele dia em que partilhámos a mesma experiência. Fausto ainda é raridade. Gosto deste Namoro, deixa-me melancolicamente feliz. Fausto musicou as belas palavras do intelectual angolano Viriato da Cruz. Sempre que ouço esta música, especialmente a versão cantada por Sérgio Godinho, recordo-me das primeiras paixões de miúdo. Em que escrevíamos cartas a caligrafia acabada de aprender. Éramos simples. Bastava-nos escrever "Gostas de mim?" e por baixo desenhar três mal amanhados quadrados precedidos de um "sim", um "não" e um "talvez". Assinava-mos com o primeiro nome, entregávamos secretamente o papel bem dobrado e esperávamos ansiosos que ela dissesse que sim. E de vez em quando ela dizia. Talvez nem tudo tenha mudado muito. G.F.


Namoro

Mandei-lhe uma carta em papel perfumado
e com letra bonita eu disse ela tinha
um sorriso luminoso tão quente e gaiato
como sol de Novembro brincando de artista nas acácias floridas
espalhando diamantes na fímbria do mar
e dando calor ao sumo das mangas
Sua pele macia – era sumaúma...
Sua pele macia, da cor do jambo, cheirando a rosas
sua pele macia guardava as doçuras do corpo rijo
tão rijo e tão doce – como maboque...
Seus seios, laranjas – laranjas do Loge
seus dentes... – marfim...


Mandei-lhe essa carta
e ela disse que não.

Mandei-lhe um cartão
que o amigo Maninho tipografou: «Por ti sofre o meu coração»
Num canto – SIM, noutro canto – NÃO


E ela o canto do Não dobrou.

Mandei-lhe um recado pela Zefa do Sete
pedindo rogando de joelhos no chão
pela Senhora do Cabo, pela Santa Ifigénia,
me desse a ventura do seu namoro...

E ela disse que não.

Levei à avó Chica, quimbanda de fama
a areia da marca que o seu pé deixou
para que nele fizesse um feitiço forte e seguro
que nela nascesse um amor como o meu...

E o feitiço falhou.

Esperei-a de tarde, à porta da fábrica
ofertei-lhe um colar e um anel e um broche,
paguei-lhe doces na calçada da Missão,
ficámos num banco do largo da Estátua,
afaguei-lhe as mãos...
falei-lhe de amor... e ela disse que não.

Andei barbado, sujo e descalço,
como um mona-ngamba.
Procuraram por mim
«-Não viu... (ai, não viu...?) não viu Benjamim!»
E perdido me deram no morro da Samba.

Para me distrair
levaram-me ao baile do sô Januário
mas ela lá estava num canto a rir
contando o meu caso às moças mais lindas do Bairro Operário.

Tocaram uma rumba – dancei com ela
e num passo maluco voámos na sala
qual uma estrela riscando o céu!
E a malta gritou: «Aí, Benjamim!»
Olhei-a nos olhos – sorriu para mim
pedi-lhe um beijo – e ela disse que sim.


Letra de Viriato Cruz
Musicado por Fausto Bordalo Dias.

Gravado em disco por Sérgio Godinho
(«De Pequenino Se Torce o Destino»)
e por Fausto («A Preto e Branco»)

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