Dia 25 de Dezembro, Natal. Já não acordo de madrugada para correr para a árvore enfeitada em busca dos presentes que misteriosamente alguém fazia o favor de me oferecer. Essas entidades ou mágicas ou suspeitosamente parentais acertavam sempre no que queria pois também as escolhas eram sempre poucas e bem definidas. Já não me deito a 24 com a ânsia de adormecer rápido e acordar como um flecha disparada em direcção à sala. Já não acordo para um dia pleno de liberdade, um dia passado inteiramente a brincar satisfeito. Então, consumia-me em jogos, deleitava-me com as peças por montar, gritava e saltava comovendo-me a cada descoberta camuflada debaixo dos embrulhos rasgados.
Já cresci um bocadinho mas o que o passar dos anos inevitavelmente me tirou hoje ajuda-me a sorrir quando me revejo na cara dos que realmente vibram com esta data especial, os pequenos. A eles o Futuro, a eles os presentes. Aos outros, resta-nos a esperança que não tenham perdido essa pequenez, que ainda comunguem réstias de inocência. Porque ainda há muitos dos outros que teimam em escrever e refazer o Natal. Têm que o pintar sempre de novas formas obcecados pela originalidade, pela melhor forma de chegar a um maior número. Escrevem e rescrevem, consomem, vendem e reciclam o tema, até à exaustão. Há outros que começam a trabalhar meses antes, idealizando montras, desenhando luzes, enfeites, jogos de som. Tudo tornam eléctrico, computorizado, maquinal. Constroem sonhos em plásticos e metais. Hiperbolizam emoções em jogos para consolas. Os fazedores de notícias seleccionam as que melhor espelham a pobreza que nesta quadra de luxúria assume lugar de obsceno destaque. Uma vez por ano, a paz. Uma vez por ano, o amor. Uma vez por ano lá se embala Jesus. Uma vez por anos os outros lembram-se que há outros porque é slogan o fazerem. E nós, já também somos aos poucos já os outros que são muitos. Vamo-nos esquecendo do silêncio num mundo de infinitos estímulos. Onde a plenitude das chamas dos madeiros na noite fria das aldeias nos deixou de aquecer, substituída pelas televisões ligadas nos urbanos apartamentos. Onde a tradição ainda é o que era mas sem se perceber porque é. Talvez o limite que estamos a chegar nos desperte a vontade de travar este ritmo frenético. Parar de deitar mais lenha, apreciar o rubro das brasas ténues. Talvez nos próximos Natais não sinta necessidade de escrever mensagens de Natal pois já o fiz e tentei mudar em mim o que nelas critico ou realizei os sonhos que nelas tracei durante o resto do ano. E é tão grande esse resto…
Já não acordo de madrugada, deito-me de madrugada. Mas ainda sou feliz no meio do torpor desta melancolia natalícia. Há felizmente o cheiro dos livros oferecidos, bilhetes por obliterar numa viagem desconhecida por fazer. Há os sonhos que ganham sabores, as rabanadas, a canela. Há os saltos de alegria e a cara de basbaque do meu primo depois de receber um barco de piratas. Existe a infância dos meus tios e dos meus pais. Existem as vitórias ao “Pictionary” das orgulhosas gerações vindouras que no “Trivial” levam baile dos quase reformados.
Existem coisas pequenas, mesquinhices, consumos, mensagens de telemóvel banais repetidas para a lista completa de contactos. Existem pequenas guerras como em qualquer família. Mas nós, os que podemos ler blogs, carregar 70 vezes no “enviar sms”, comprar o último perfume da Hugo Boss, passar o ano em Barcelona, temos mais que algum conforto financeiro: temos segurança e esperança. Nós temos Futuro, mesmo desconhecendo-o. Há outros, estes também muitos, sem quaisquer horizontes. Como diria Sidónio Muralha: «Hoje é dia de Natal, mas quando será de todos?».G.F.
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