sábado, outubro 11, 2003

«Quero ficar sempre estudante»

Acabo de acordar de três semanas extenuantes. Sento-me nesta cadeira para escrever essencialmente sobre a revolta de querer ser para sempre estudante. Para falar sobretudo do que senti nestes dias que acabam da melhor maneira: na gratificação de um cansaço puramente físico. Foram dias de praxes, de jogos, de comunhões, de adaptações, de trocas, de muitas gargalhadas. Foram dias de festa e de fraternidade que vai faltando nas faculdades desta capital imensa mas fechada, que se isola em cada um dos seus estudantes. Hoje, que acordo cansado mas feliz, escrevo sobre união. Hoje, com uma canela de nódoas negras, uma escoliose a rir-se de mim e agradecer-me por mais uns dias de más posturas e desengonçados esforços, os olhos mal abertos como se estivesse constantemente a acordar mesmo sem nunca adormecer, uma voz que nunca chegaria ao Tivoli, os pés com necessidade de 5 tipos diferentes de massagem oriental, escrevo sobre o espírito académico.

Recuo à faculdade, aos preparativos, ao “antes de”. Revejo os guias do caloiro num monitor à espera de se tornarem matéria. Às discussões empolgadas sobre a praxe, ao golo da vitória, o 6 a 5 que eu e o Roque marcámos, tornando-nos nos primeiros portugueses campeões intergalácticos de matrecos. Retrocedo a toda a preparação da recepção ao caloiro, que abraça pela primeira vez o Ensino Superior.

E o depois, o primeiro dia (mais um) do resto da vida deles. As matrículas, os seus primeiros olhares que viajaram por nós e pelos edifícios estranhos e que daqui a 6 meses já serão parte do seu quotidiano, seu segundo lar, sua casa, a da sua família. Os seus olhos que espelhavam medos, expectativas, dúvidas, muitas incertezas, poucas garantias. No momento em que entraram na faculdade e a sua vida, que tantas voltas dá, mudou, num segundo. E assim mudou o seu mundo. Um mundo que começou com aula fantasma de um professor que sentimos um dos nossos, diria mesmo um colega; um mundo que se iniciou com músicas repetidas até à exaustão, gincanas, orgasmos fingidos, figuras tristes nas ruas alfacinhas, aleluias libertadoras, tribunais com “tareões de pila” e por fim baptismos com as águas límpidas do lago académico.

Estamos, os que preparámos, cansados, é verdade, mas o nosso esforço por uma maior unidade entre todos, pela criação de um bom ambiente académico, importantíssimo para um bom trabalho, para um estudo feliz e com sucesso, foi recompensado. Isso é feito simplesmente quando ouvimos e vemos a forma como os próprios caloiros agradecem, dão eles o exemplo de boa disposição, de incentivo e inovação. Quando sorriem e já se conhecem minimamente entre si. Estamos cansados porque largámos a refrescante t-shirt e o conforto dos nossos ténis para nos trajarmos a preto em plenos dias de calor, calçando sapatos amigos da bola e do calo. Aturámos numa só noite de festa, uns 700 bêbados, limpamos milhares de copos de cerveja, varremos vários metros quadrados de todo o tipo de lixo. Exaustos, com lucro mais que monetário, um lucro de satisfação.

Tudo isto num ritmo arrebatador de 4 dias intensos em que veteranos e caloiros estão por descobrir quem se divertiu mais. Em que veteranos voltaram a ser por momentos caloiros como todos já fomos, pelo menos em alguma altura das nossas vidas. Já todos tivemos perdidos no meio de uma multidão de estranhos cuja a única certeza é que a maioria deles viverá connosco pelo menos 5 anos da nossa vida. Alias, essa minoria que o destino recolherá do aglomerado de caras novas será mesmo parte substancial da nossa vida. Crescerá connosco; ensinar-nos-á; rir-se à das nossas piadas; estará connosco a dançar na primeira bebedeira; confidenciará sobre íntimas afinidades; será o primeiro a saber que tirámos a carta; copiará por nós no exame do cadeirão lixado; estará 4 dias seguidos de plantão a fazer trabalhos de grupo onde de trabalho só se podem contar as últimas 12 horas antes da entrega; comerá na cantina o mesmo bitoque desenxabido que nós; passará bilhetes satíricos sobre os professores em pleno anfiteatro; gritará connosco até à exaustão os gritos académicos; cantará arrepiado, ao trinar de uma guitarra, uma serenata; erguerá copos de sangria nos ares perfumados por tabacos e brindará a tudo e a todos, aos muitos e pequenos nadas, à vida e aos seus amores de estudante, aos tempos dos verdes anos em que ainda sorrimos sem o travo de amargura nos corações e ainda nas vozes trazemos o doce sabor do sonho de ainda podermos ser tudo o que quisermos.

Essa pequena minoria, o nosso grupo de colegas, de amigos, quererá ser para sempre estudante e eternizar a tal ilusão. Quererá que o tempo estagne e que o amanhã incerto (a altura em que estaremos por nossa conta, o momento em que as nossas capas negras se definitivamente arrumarem, os trajes deixarem de servir, os corredores que percorremos todos os dias desaparecerem, as vozes de fundo familiares do bar se calarem) seja o resultado das relações e pontes que se foram construindo ao longo destes anos. Porque esses companheiros e amigos perceberão que, como acabou de cantar Caetano Veloso no primeiro canal, «embora o tempo não pare, no entanto nunca envelhece.». G.F.C.


- Comentários, dúvidas, incertezas, ofertas monetárias, sermões, correcções, propostas irrecusáveis, cabalas, feedbacks, basbaquices quotidianas, tudo isso para: oracludosbasbaks@mail.pt Critica.

Sem comentários: