terça-feira, outubro 28, 2003

IMPROBE BENFICA, QUID NON MORTALIA PECTORA COGIS!

Sinto que o amor a um clube de futebol é definitivamente o sentimento mais estúpido e inexplicável que alguém pode nutrir. E como o que tudo é inexplicável e estúpido na vida há que perder tempo a dissertar sobre isso. Falarmos das nossas paixões mais que exorcizar-nos humedece-nos saudavelmente os olhos, dá-nos alento para nos apaixonarmos outra vez, como a primeira. E a primeira vez que me lembro do Benfica tinha uns 3 ou 4 anos. Lembro-me que ainda não andava na pré primária. Nesse tempo éramos todos do Benfica. A cor preferida de todos os meus amigos era o vermelho. A canção que sabíamos melhor era “Olé olá o Benfica é o melhor que há”. Havia sempre um, e apenas um, do Sporting, que dizia “Que há que havia, mas agora é uma granda porcaria”. Havia sempre um, apenas um. E mesmo esse sabia que o que cantava não era verdade.

Guardo ainda religiosamente o cartão de sócio isento menor. Com a maquete do antigo Estádio da Luz no verso e a fotografia na fronte tirada há uns 14 ou 15 anos. E há 14 ou 15 anos, aquele que agora revejo na impressão, fazia colecções de calendários e cromos com todos jogadores do clube da águia.
Não ia ao Estádio para ver o jogo em si mas para ver, espantado, a forma como os velhotes dos lugares cativos se exaltavam e chamavam nomes ao árbitro. Foi no Estádio da Luz que ouvi pela primeira vez “filho de uma granda puta”. Não sabia ainda o que eram as putas, mas que os velhos gostavam de chama-las gostavam. Também tinha a ligeira impressão de que aqueles senhores não gostavam muito do mais gordo que vestia de preto. Ria-me de toda aquela energia dos mais velhos mas entediava-me porque, a bem da verdade, só gostava do momento em que era golo, o meu pai me pegava ao colo e todo o estádio gritava em uníssono elevando-se com as suas bandeiras rubras.. Isso era o que me dava mais satisfação, fosse no estádio frente ao Penafiel, fosse em casa, no sofá, frente ao Arsenal para a Taça dos Campeões Europeus. O ritual de gritar golo, ser levantado e abraçado pelo meu pai, ouvir a minha mãe gritar assustada, ficar estupidamente feliz a gritar “olé olá”, são momentos únicos que o Benfica me proporcionou.

Esses momentos não se cingiam a casa ou à Catedral. Na escola tornava-me no Vítor Paneira quando centrava a bola para a Cláudia, que era o melhor jogador/a da turma. Quando marcava um golo vestia a pele de Rui Águas, quando o Jepas mandava um “bajardo” a 50 metros da baliza, transformava-o no Isaías.

Houve também desilusões, por exemplo na final europeia em que os jogadores do Benfica perdiam constantemente as chuteiras ou noutra época em que o Rui Águas se mudou para o F.C.P. e eu queimei, às escondidas, todos os cromos que tinha dele. Foi a minha vingança pessoal e desde então que passei a odiar o Porto e os seus esquemas. Influenciado pelo meu pai claro, esse ódio a Pinto da Costa, Reinaldo Teles, Guarda Abel, Paulinho Santos e o resto da Inteligenzia foi crescendo. Não se tratava de o ódio a um clube mas um sentimento de revolta contra as insinuações, a falta de fairplay, os jogos ganhos na secretaria, as falsas suspeições, a ironia a roçar a ordinarice, o compadrio, enfim, uma amálgama de situações que mandaram para a fossa o futebol português. Via o Porto como a equipa ideal dos Maus, nos desenhos animados do Tsubasa, aqueles que não olham a meios para atingir os fins. Nunca me hei de esquecer do melhor exemplo da tacanhez humana, quando num jogo, ao sair de maca, Paulinho Santos, fingindo-se lesionado para ganhar tempo, piscou o olho aos seus capos colegas no banco mafioso azul e branco. Hoje esse Mal continua, foi fielmente transmitido dos mestres para os discípulos. Agridem-se jogadores com maldade atroz, faz-se anti jogo, quebram-se contra ataques desonradamente, pressionam-se fiscais de linha. Um Mal que tornou este campeonato tristíssimo. Um Mal que vai tirando a magia dos encontros nacionais e que faz com que o meu vizinho de 13 anos torça pelo Barcelona. Um Mal que trouxe o pior que existe no nosso portuguesismo de bairro. Pois dizia bem um professor que tive, “o Desporto não forma carácter, revela-o”….

Para mim, então e agora, O Bem e o Mal encontravam dentro das quatro linhas a melhor analogia. Naqueles tempos, ser do Benfica tinha deixado de ser apenas “Ser do Benfica”, mas tornara-se ser de um clube contra os pequenos, os reles, os provincianos bacocos. Um clube do Povo mas com classe e não um clube de elite. Pois o Benfica é o único exemplo de verdadeira democracia existente em Portugal. Quando o João Pinto marcou o 3º golo frente ao Sporting em Alvalade, no célebre 3-6, ao mesmo tempo gritaram golo pedreiros, monárquicos, cabeleiras, escritores, presidiários, advogados, doentes terminais, médicos, repetentes, professores, pretos, brancos, monhés, portugueses de 2ª geração, crianças, mulheres e idosos, cultos, bimbos, gajos que se julgam bimbos, bimbos que se julgam cultos, políticos, gente honesta, putas e padres. Gritaram e gritam homens e mulheres com uma paixão, na sua maioria uma amostra do país real que temos, o país que muitos não querem ver ou não sabem existir. Pessoas que constroem a História de um país mal educado, entregue aos seus traumas de guerra e a anos de acorrentamento. Pessoas da tribo do futebol que infelizmente precisam deste circo moderno. Precisam que o Nuno Gomes se torne Nuno Golos e os faça esquecer por momentos a sabida incerteza quanto ao dia de amanhã. Porque um golo lhes dá essa iludida esperança, porque uma vitória os transforma em heróis que nunca chegarão a ser.

E no Sábado, heróis anónimos se juntaram para um momento histórico. Uniram-se na nova Catedral, onde religião e paixão se confundem. Onde as balizas se transformam em altares, os novos bancos de plástico em confessionários. Onde os Santos dão o pontapé de saída simbólico e os Sacerdotes da bola se encarregam de levar a audiência a comungar do Golo. Nessa noite, 65 mil vozes acompanhadas por outros milhões em casa arrepiaram-se com a Festa. Um sonho imenso envolveu-nos a todos e a Luz iluminou-se. Limpa, imponente, soberba, moderna. Cascata de luzes, constelações, uma águia a cruzar os céus, lágrimas, assobios aos promíscuos que sempre se aproveitaram da “religião” para ganhar os próprios fiéis aos seus credos, fogo de artifício. Paixão e emoção. Porque a vida não se faz só de orçamentos, porque por vezes também precisamos de parar e amar perdidamente uma causa, uma mulher, um ideal, um clube. E é feliz a vida nesses momentos em que muitos amamos o mesmo. Em que muitos demonstramos o nosso fervor, nos resignamos aos Deuses da Bola e nos sentimos pequenos face ao gigante, à instituição, à História que nos ultrapassa.

No Sábado, dia 25 de Outubro de 2003, renovou-se o sonho, lançaram-se novas redes à esperança. E quando o Benfica ganha, ganhamos nós, ganha o País. As manhãs lusas tornam-se mais simpáticas, o trabalho árduo e mal pago faz-se com uma motivação renovada. Passa-se nas ruas e sorri-se ao ouvir “e o nosso Benfica?”. Pois hoje o nosso Benfica, ainda não vai bem, há apenas intenções. Dez anos já é muito tempo mas até ao dia em que a resposta ao “E o nosso Benfica?” se traduzir nas ruas ao grito de “Campeões”, corações baterão mais acelerados, argumentos irracionais serão esgrimidos nas mesas de café. Haverão mais dias como os de Sábado. A História de um clube desportivo faz-se destes dias. Dos dias em que vamos para o estádio expectantes, ansiosos, confiantes na vitória. Dos dias em que esquecemos o passado recente e acreditamos que é a partir daquele momento que tudo se reconstruirá. Dos dias em que o cachecol ao pescoço transporta os nossos traumas, os nossos receios, as nossas raivas e ódios, as nossas crenças e atitudes.
A História do Benfica e a minha, e a nossa, foram-se construindo juntas. Dias como os de Sábado são como festas de anos a que íamos quando éramos putos, não sabíamos como iam ser mas tínhamos quase a certeza que alguma coisa maravilhosa podia acontecer. No Sábado a Magia aconteceu. Acredito que há mais Sábados e Domingos assim. Obrigado também por isso Glorioso Sport Lisboa e Benfica. G.F.C.

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