Balu é uma personagem de “Livro da Selva”, de Rudyard Kipling. É um simples urso que se torna numa espécie de tutor de Mogli, um bebé humano encontrado na mata indiana e adoptado por uma alcateia. Na obra de Kipling, onde metáfora da selva, sociedade moderna, é trazida genialmente, Balu é um urso simpático, bonacheirão, encarregue da educação de Mogli. Encarregue da sua sobrevivência no meio dos selvagens animais.
Está a fazer um ano que vesti a pele de Balu, na Alcateia do agrupamento de escuteiros a que pertenço. Encontrei não um bebé abandonado no meio de um matagal mas sim 20 crianças de quem fui animador, confidente, educador, amigo, pai, mãe, irmão mais velho, guarda-redes, trocador de calças borradas, companheiro de brincadeiras. A minha tarefa, a de difundir o escutismo nestas crianças. Tentar mostrar-lhes um dos muitos caminhos para a felicidade, demonstrar-lhes esta forma especial de se ser pessoa. A expectativa do pesado fardo da responsabilidade e a inabilidade de dar um exemplo de uma coisa que ainda não sei ser, adulto, eram os meus principais medos.
Contudo, darem-me as peles deste urso revelou-se uma experiência única e, sem qualquer incerteza, gratificante. Fins-de-semana em que dei o meu testemunho de vida, acampamentos em que retransmiti o que os mais velhos me haviam ensinado, férias que perdi com amigos para poder ter um papel principal numa das coisas mais mágicas da vida de cada um e nós outros. A nossa infância. A que ainda não é assim tão velha e a quem fui buscar, força, imaginação, lembranças cristalinas, sorrisos inocentes para poder ser apenas um deles (um pouco mais alto, com mais pelos e que não pode monstrar que também se porta mal, também diz asneiras, também as comete). Como todos cometemos.
Descobri então que o André gosta da Sara, que é maria rapaz e já gostou do João, que já deu uma vez um beijinho na boca de uma menina mas não “gostou por causa que tinha cuspo”, que é amigo do Diogo, calmo e sereno, que não gosta de ninguém e que se chateia também com o mongo do Eduardo, que foi o meu super guru ajudante e que também irrita a Sofia que tem uns óculos de massa castiços e salvou o violino, prima do Michael que inventou uma música para quando alguém diz uma calinada e todos “o barram”, que se porta ainda pior que o Bernardo, saído de uma Britcom, loiro, “cromo 101 numa caderneta de 100” de quem a Barriguitas, “panhonha” tem um fraquinho. Perdoe-me a exposição de algumas confidências mas parto do princípio que nenhum dos lesados lê blogs.
Foi um ano a descobri-los e a descobrir-me. A pensar no tempo em que não pensava. Em que não precisava de blogs. Bastava-me uns quantos playmobils. Foi um ano em que percebi realmente porque é que um pai ou uma mãe, embora ame um filho, sinta de quando a quando a vontade de lhe dar umas traulitadas. E quando a paciência se soltava saia o sopapo acompanhado de um sermão. Talvez não tenha surtido efeito, talvez nunca chegarei a ver resultados práticos do trabalho que realizei com eles. Talvez nunca saberei de que forma influenciei as suas vidas, se se lembrarão de mim, das gargalhadas que trocámos, do medo que tiveram quando o ladrão de violinos lhes roubou o violino de brincar transformado em Stradivarius. Talvez se esquecerão de mim e dos outros animadores e chefes meus colegas que lhes ensinaram os nós, a utilizar um machado para fazer estacas, um serrão sem se cortarem, a montar um abrigo ou uma mesa para todos, a ser leal, a honrar a palavra, a ser disciplinado, a ser útil, a ser único, a ser alguém. Ou talvez este sentir a vida e esta felicidade esteja subtilmente a formar-se e a faze-los, aos poucos, amar uma vida no meio da Natureza. Amar as canções despidas de adornos, cantadas à volta de um fogo sereno, sob um céu estrelado que serve de rumo à descoberta de um passado feliz que um dia também eles terão.
E, sem esperar, recebi uma recompensa melhor do que poderia imaginar. Deu-ma o Guilherme, de 8 anos no acampamento de Verão de finais de Agosto. Apenas consegui responder com um sorriso emocionado. As suas palavras resumiriam todo este post e são elas um momento de beleza que valeu pelo ano todo. Estava sentado, a cuidar das feridas, cansado, a pensar sobre o facto de estar ali, do ano estar a acabar, da alegria de ter estado com eles, quando o Guilherme se sentou junto a mim, tentou por o braço à volta dos meus ombros mais altos que ele e, meio pendurado olhou tal como eu o horizonte perguntando-me com a sua voz roufenha e castiça. - «Então amigo urso, como é que vai essa vida?» G.F.C.
Sem comentários:
Enviar um comentário