quinta-feira, julho 17, 2003

regresso de Lisboa




Não ter ainda carta de condução pode revelar-se um problema em algumas situações mas noutros casos faz com que o comboio se torne um óptimo local para parar andando e pensar nos últimos tempos. Foi então, há tempos, que escrevi estas linhas e mostro-as agora porque seriam o conteúdo de um e-mail a mandar para uma pessoa mais a norte, que gostei de conhecer. Se não fosse ela, tudo o que agora existe em palavras teriam sido apenas pensamentos empacotados a um canto dos armazéns da memória a longo prazo. Um obrigado especial.

Perdi o comboio. Por apenas 12 segundos. São 23h46 minutos e 18 segundos. O cais da estação estaria vazio, não fosse a minha existência ali e a de uma senhora de meia-idade. Observo-a discretamente: telemóvel vestido por um padrão de vaca leiteira, cabelo pintado de um laranja ténue, t-shirt com uma dama de copas. Vou ao meu bornal, tiro um baralho que costumo levar, procuro pelo que vi estampado. Observo a dama que olha de esguelha, reviro a carta: 2 siamesas de copas. Enquanto me lembro de ligações passadas, lembro-me de ti e relembro-me do Porto. Volto a olhar o relógio, só depois de meia hora viria o próximo comboio. Por apenas 12 segundos perdi o último. Segundos que ditam a vida nas urbes. Constato que o homem corre cada vez mais velozmente e que todos corremos contra ou por algo. Porém, felizmente ou não, em Portugal ninguém leva muito a sério a responsabilidade temporal. Tento leva-la embora sinta que esta algema suiça que trago apertada ao pulso não me aprisiona assim tanto. Paro de escrever, chegam 2 pretos com o ar simpático de quem me vai tentar roubar. Aproximam-se e olham para o caderno que trago. Afastam-se. Talvez tivessem reparado na cara de parvo de faço quando estou a escrever. Pelo menos imagino-a ridícula uma vez que ponho a língua de fora e vou sorrindo de quando a quando. Talvez a satisfação nos dê um rosto demente. Não sei, só sei que não fui assaltado. Sou um sobrevivente portanto. Bem, perdi o comboio por 12 segundos, ganhei 30 minutos do tédio de pensar e do contra ataque de escrever.

Estou junto à feira popular, o cheiro assado das sardinhas penetra-me as narinas. Olho por trás do ombro e vejo o néon dos vários carrosséis. Do looping, partem gritos femininos que competem pela maior onda acústica produzida. Gritos que se misturam com as sereias das ambulâncias que cruzam a Avenida da República. Passam o sinal vermelho. Dentro delas, vai talvez alguém para quem um segundo pode ser decisivo. Chega um velhote que se senta ao pé de mim. Ucraniano. Não percebo o título do livro em 5ª mão que lê, mas parece-me ser de cowboys. Ou de ìndios. E eu à espera do Cavalo de Ferro.

È meia-noite e está tudo vivo ainda. Tudo marcha para voltar a casa, tudo corre para sair nessa Lisboa que anoitece. Maquinalmente tudo se move e tudo espera ao mesmo tempo. È esta a Lisboa que percepciono, a Lisboa onde estudo, a Lisboa onde estou quando não durmo. A cidade onde os cotovelos se poisam no Castelo. Estive nele, também pousado, nessa manhã. Avistei as velhas casarias, passei pelas tascas onde me senti no país dos matraquilhos. Passei pelas ruas contraditórias onde executivos engomados se cruzavam com freaks coloridos e turistas de “Nikon” em punho. Velhos que escarram no chão, mulheres bonitas em cafés de vanguarda, o eléctrico velhinho, eu, os amigos, uma canção mal trauteada. Uma serenata académica, “Ondas do Douro”. Viajei a norte por momentos e regressei ao Tejo, avistado no término de umas escadinhas alfacinhas. Uma fragata da Marinha cruza o esverdeado fluvial enquanto um veleiro calmamente se passeia em mais um dia de mediterrânico Sol. A força imponente do navio e a fagilidade da embarcação empurrada pelo vento. O Rio tantas vezes cantado. A lembrança de um provérbio quiçá chinês que diz “nunca tomarás banho duas vezes no mesmo Rio”.

Já estou no comboio, olho lá fora e o movimento aparente das casas que ladeiam a linha parece-me hoje mais lento. Diferente todos os dias, como o rio, mas hoje mais lento. Aconchego-me no banco e inibo-me na escrita. Alguém se sentou ao meu lado. Sinto o meu território físico invadido, contraio-me. Tento esconder a escrita e contínuo. Entram e partem pessoas em cada estação. Incontáveis as raças, os credos, as vidas que já se cruzaram naquelas portas automáticas. Recordo-me novamente da Lisboa desse dia, a antiga que se confunde com a moderna. Da luzes naturais e dos perfumes fabricados. E torno, conformado, aos subúrbios. Reconforta-me apenas a Serra da Lua, com a Pena que surge como a cereja em cima do bolo. Mostro o passe ao revisor que surge no meio dessas imagens mentais. Começa então um musical suburbano. À minha frente alguém ressona, e o inexplicável é que ressona sintonizado com o picar dos bilhetes. Eis que para colmatar esta sinfonia, entra um cego com a sua bengala tradutora do espaço físico. 3 ritmos, 3 sons, 3 simples melodias. Banda sonora simples de um regresso a casa. De uma viagem num comboio descendente que trás toda a uma cidade nas suas entranhas. Uma máquina que nos trás de Lisboa e que nos faz sonhar com Sintra. Das sombras da cidade branca para o aclarado betão no meio da serra densa escurecida e perdida na bruma.

Revejo a publicidade ao centro cultural Olga Cadaval e a placa para o Palácio Nacional de Queluz. As artes e as rainhas no mesmo intervalo de tempo. Penso qual será a Arte Rainha e se haverá alguma Rainha das Artes. Volto ao baralho na procura da dama de copas entretanto baralhada. Sai de vez, à terceira, depois de um Joker e de um Ás de Ouros. Como não acredito agora em sortes nem destinos, tento não associar as três cartas e deixo a ligação mística a quem gostar de o fazer. Volto a baralhar e paro.

Última paragem. Esse alguém que ressonava, acorda sobressaltado. Lisboa já anoiteceu e todos os subúbrios começam a pensar em amanhecer. Afinal o tempo que se quis que passasse rápido, já foi. Demorou apenas algumas palavras perdidas, teve a velocidade de um sussurro. Regressei agora e regresso amanhã. Talvez sejamos feitos de regressos, de sequelas, ou talvez tenhamos de partir todos os dias, mesmo que de manhã não nos apeteça. Amanhã não sei, mas neste momento só me apetece pousar as palavras.G.F.C.


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