Bem antes dos “teras” o meu Nintendo NES tinha oito megas.
Foi a segunda melhor prenda que recebi em garoto. A primeira, o barco dos
piratas da Playmobil. Haverão melhores coisas a saborear enquanto estamos a
viver a vida de putos do que o momento em que os nossos pais nos oferecem o
exacto presente desejado? Joguei muitos jogos desde aquele verão em que passei
para a escola preparatória. Hoje que terminei outros ciclos e passo mais que as
horas necessárias a ler na internet metáforas do mundo, tenho encontrado
analogias nos jogos de vídeo para entender melhor o jogo que é a vida que passo
fora das tecnologias. Tentar entender.
Houve uma viagem em
que conheci, num hostel sobejamente manhoso, umas miúdas que se diziam poetisas
a tentarem ser engatadas por uns fulanos que se proclamavam programadores de
software. Dessas conversas e de depois ter conhecido um tipo de nome Oliver
Emberton, anotei algumas pequenas pontes para chegar a mais uma pequena
explicação nada cabal do que é a nossa vida-jogo.
A vida-jogo
Diziam os italianos antigos, justamente gesticulando, que a
vida é como um jogo de xadrez. No final peões e reis somos guardados todos na
mesma caixa. A vida é de facto um discorrer pela continuidade de estratégias
que usamos durante todo o tempo que estamos acordados. Mesmo quando a nossa
estratégia é decidirmo-nos por não ter qualquer uma. Quando ela é outra coisa,
quando é jogarmo-nos ao azar. Jogar-nos, termo utilizado ternamente pelos
alentejanos, significa também atirar-nos. E quando não nos estamos a atirar à
vida, estamos a planear. Existem alguns pequenos jogos desta vida que é preciso
saber jogar para que a nossa mortalidade não seja apenas um dado adquirido.
Estes são jogos que exigem menos razão. Por exemplo dançar o hula, fazer um mortal encarpado à retaguarda,
mergulhar em pelota num lago gelado, saltar naquela atração ridícula que
existia na zona radical da expo 98. São jogos que requerem algum planeamento
para poderem ser adquiridos mas quando os estamos a jogar é necessário
sobretudo percebermos as teclas certas e pensar menos. Contudo, a vida, essa
que passa enquanto esquecemos o seu durar ao fazermos o amor, é feita pela
forma como gerimos os nossos recursos. Os melhores jogadores são os que usam o
tempo da melhor forma. Ninguém gosta de deixar os bónus de fora por culpa de um
“time’s up”. No início do jogo da vida é o tempo que temos a mais que nos faz
saborear a vitória de cada nível. Mais tarde no jogo percebemos que as moedas
multiplicadas também nos ajudam a ter mais força, mas o tempo acaba por ser
sempre a espada de Dâmocles sobre a nossa cabeça.
A vida começa quando alguém, por atração enganosa ou por
decisão razoável, decide colocar uns créditos na máquina. Um que carrega no
power, a outra que carrega no start e a nossa persona surge para ser escolhida.
Uns dizem que está escrito no Universo, eu acredito mais que já está prescrito
pela sorte. Está aqui a nossa personagem escolhida, arquemos então com as
nossas circunstâncias de sermos quem somos, rumo até à boss final.
Até termos 15,16 anos, a nossa vida é basicamente vivenciada
por uma quantidade infindável de tutoriais. Saltamos de plataforma em
plataforma tentando e errando, modelando-nos, percebendo o que vai resultando
ou não com outros jogadores iguais a nós que tentam guiar-nos. E com outros
menos noobs que já jogam o jogo há mais tempo. Não adianta: todos temos que
passar por isto. Se não passarmos, mais à frente, depois de morridas as
primeiras vidas, teremos que voltar a alguns destes tutoriais mal aprendidos.
Enquanto somos putos jovens, temos a nossa barra verde sempre cheia, o tempo
também raramente escasseia. Falta-nos sobretudo a experiência que advém do
treino. Mal começamos a ganhar experiência é mais fácil mudar para mundos mais
evoluídos. Surgem os melhores parceiros, os melhores empregos, as melhores
oportunidades de ganhar rapidamente.
Ao chegarmos aos 23,24, temos tempo, energia e algumas
competências. A quantidade gigante de bosses para ainda passar não nos assusta.
O que não nos mata torna-nos mais pequenos. E isto o tempo suficiente para
sobrevivermos até encontrar cogumelos mágicos pouco maduros que nos dão novas
vidas. Tudo o que fazemos terá repercussões no andamento dos níveis. Drogas e
álcool darão alguma rapidez e saltos mais altos mas acabarão por talhar saúdes,
necessárias mais à frente. Horas de estudo e trabalho cortarão coraçõezinhos
mas tarde serão transformados em destrezas necessárias.
O mais difícil é quando o nosso cérebro quer uma coisa e o
nosso corpo deseja outra. Quando sabemos exactamente a distância para saltar
para o feijoeiro mas o nosso dedo clica o “b” antes do tempo. Também acredito
que isto não é um Bug nem uma malformação na nossa personagem. Somos uns
fulanos dependentes da nossa saúde, da nossa energia e da nossa motivação. A nossa motivação tem picos ao longo do dia,
pode ser tirânica e às vezes é preciso deitarmo-nos à sua mercê. Ganhar
competências ao longo deste jogo é essencial. Uma coisa é perceber muito de
computadores, outra é saber dar toques de cabeça repetidamente. A primeira pode
levar-te a Silicon Valley a segunda ao calçadão da Costa da Caparica. Se
perceberes de psicologia, de negócios e fores bué confiante podes tornar-te numa
empreendedora de sucesso. Se perceberes de psicologia, dançares aquele kizomba
e dares o toquezinho gourmet na cozinha vais ser um íman para as damas. Estuda
o adversário, estuda psicologia.
O jogo começa num mundo estranho. A localização é
importante. Move-te para onde houver recursos. Não é preciso nenhum
primeiro-ministro medíocre apregoá-lo para se perceber isso. Se neste cano não
há nada, entra no próximo. Paga com saudade na portagem. Quanto custa a
saudade? (quase o prazer do jogo todo…)
E quanto custa amar? Nos primeiros níveis serás rejeitado
algumas vezes, rejeitarás outras. Tal como num jogo de estratégia social,
investe o tempo nas coisas certas. Na saúde, no desporto, na carreira, na
sociabilização. Serás uma jogadora atraente, um player preparado. Só terás
então de encontrar as plataformas onde estão as pessoas certas para ti.
Quanto às moedas apanha-as todas, poupa-as, investe-as,
acumula-as, usa-as para ganhar tempos. Coopera com outros jogadores. Não as
uses como o único objectivo do jogo. Nunca.
Chegados aos últimos níveis começamos a ficar mais letárgicos,
a usar roupa mais confortávelzinha, mais mocos, menos loucos, menos latentes,
mais dementes. Alguns voltaremos às fraldas. Com toda a sorte do mundo
transformada em azar veremos desaparecer outros jogadores a quem já estávamos
tão habituados. Afectados a eles, afectados por eles, tentaremos seguir até ao
último nível que pudermos. Neste último nível já pouco controlamos o nosso
ambiente. Exactamente como no nível zero. Pouco há que possamos fazer ou mudar.
Na entrada para a fortaleza da boss final entendemos mais ou menos o jogo e
chegamos à conclusão que as melhores partes foram as mais céleres a serem consumadas.
Queremos voltar para trás, remendar aquela hora, viver outra vez aquele dia.
Não dá. A Boss chegou e não há códigos nem batotas que nos valham. Os que
julgam que não a conseguem derrotar fenecem. Os que julgam que a venceram
também. Todos guardados nas mesmas caixas. Provavelmente a única diferença
entre os primeiros e os segundos é que os primeiros estiveram sempre a jogar.
Os outros, a maioria das vezes, a criar jogos que ainda não existem e sobretudo
a brincar.
Gonçalo Fontes
1 comentário:
de uma melâncolia feliz este texto. impossível não gostar de ler este blog, sempre tudo tão cru, sem grandes rodeios e floreados, mas com uma paixão latente.
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