O último
beijo que o Sr.M. deu à sua mulher foi há mais de duas décadas. Desde aí,
jamais tocou a boca de outra mulher. Já não se emociona quando se lembra disso.
É que já não se lembra disso. Pergunta-me pelo Benfica enquanto vislumbra a
sépia do bigode emoldurado do seu avô. Grave. Graves. Sepulturas. É quase quase
primavera mas a casa perfuma-se de outono há muitas estações. Olhamos os dois
lá para fora, chegou alguém. Apolónia, hora do lobo. Do outro lado da linha uma
rapariga acaba de conhecer o último amor da sua vida. Conversaram durante todo o
espaço que demora o Porto a querer encontrar Lisboa. Ele trabalha como voz-off.
Em estações de rádio e, em tempos, de comboios. Anunciava destinos. Por
vergonha ou medo de histórias não trocaram de apelidos. Não se adicionarão por
enquanto. Tem na mão impressa a reserva: Check In no Hostel Esperança. Sorri e
levanta a cabeça para a montra. Vê os jornais do dia a serem deitados fora
outra vez. Na capa de um estampa-se a revolta popular. Um cartaz que grita cirílico.
Nos olhos de quem o pega, a raiva. Um ferro que o vai matar nas mãos de um polícia
para quem a segurança acabou para sempre. Nós não conseguimos ver o jornal.
"Somos quase campeões caralho" E sorrimos. No andar de cima um bebé chora. Um berço
logo à entrada, “raio de lugar para se guardar um bebé”. A mãe é bonita. O pai
é incógnito. O bebé não sabe de nada e já chora. Há um vento doce que varre
manso esta Lisboa do fim dos dias menos domésticos. Fantasmas dos amigos marinheiros
do Sr. M. trepam-lhe todos os mastros das suas palavras. Pergunto-lhe se já
descobriu a que sabe o medo? Ele diz-me, “prestes, prestes”. A rapariga
adormece sozinha pela última vez na vida. O bebé já não chora. “Ao menos
campeões.”
Gonçalo Fontes
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