Anunciei que voltava em breve e passaram quase dez meses.
Nunca quis encerrar este espaço pois sempre achei que numa hora como a hora de
hoje, eu ia ter necessidade de voltar a mostrar alguém algumas novas imagens escritas. Nestes quase nove anos
de blogue escrevi muito pouco. O tempo completamente livre que tinha para o
fazer usei-o para dormir mais uns minutos ou especar-me perante este rectángulo
em branco sem querer exibir nada a ninguém. Nesses tempos, o Documento1 de word
foi apenas página anónima sem salvação. Muitas foram as vezes que, prestes a
salvar alguma coisa, decidi apagar tudo.
Escrever exige disciplina como
uma vez me respondeu José Luís Peixoto. E eu só sei ter disciplina para aquilo
que devo fazer e não para o que quero fazer. Acreditem, eu quis e quero muitas
vezes fazê-lo, todavia, nesses entretantos, as palavras não serviam e as
histórias que tinha para relatar não eram para te contar e nem tão pouco tinham
qualquer necessidade de serem resgatadas. Em tempo de sequestro e pouca
posteridade eu envelheci e envelheci porque os outros à minha volta também não
continuámos novos. Porém, em todas as partidas, nunca voltei de mãos vazias.
Por vezes voltei com o coração mondado, mas continuei a viajar e a ser, de
quando a quando, porque não, feliz. Este blogue foi a minha forma de partilhar
a minha saudável solidão. Dizem-me que eu fujo mas eu não concordo. Dizem-me que
eu me perco mas eu não posso aceitar completamente. Dizem-me que eu devia
crescer e aí sim, só que eu não sei ainda como.
Na sexta feira faço trinta anos e ainda não os
sinto. Entre copos, cidades e mulheres, sinto que vivi 60 anos mas ao mesmo
tempo assusta-me aceitar que já não tenho 15. É –me fascinantemente
inacreditável saber que sou psicólogo, que assino recibos de ordenado, que
oriento estágios, que supostamente sou um cidadão idóneo e ajudo na protecção
dos direitos das crianças e que termino e-mails para adultos rotineiramente com
“os melhores cumprimentos”. Logo eu, que não tão poucas são as vezes, sonho que
recebo uma carta da faculdade a dizer “Gonçalo, afinal você não acabou o curso,
apresente-se na secretaria com carácter de urgência”. Eu, que sinto ter em mim
cem mil mundos urgentes por mapear, vejo-me ter que responder com confiança
sobre as coordenadas da geografia dos outros. Eu, que falo sobre as relações
desses outros com laivos empírico-académicos e mais um terço de bitaites testados
com casais alheios e, no fim dos cabos, estou solteiro há talvez quatro anos e
já não me lembro da maravilha do amor feito entre nós. Eu que pertenço a Ordens
e a Comissões, e vou a Formações e transmito opiniões e elaboro Relatórios de Avaliações mas que, noves fora, só queria estar ali com os putos a jogar 5 para
5 entre balizas feitas de mochilas monte-campo.
Não foi assim há tantas centenas de
dias que eu cantava numa banda de rock, vivia de bicicleta a 45 minutos de Veneza
e não sabia o que eram categorias profissionais, cronogramas e amortizações. Não
foi há mais de uma década em que nos sentávamos na rádio do bar da faculdade a
tecer comentários sobre as mamas bonitas de todas elas, seleccionadas do 1º ao
5º ano.
No final da semana eu terei trinta anos. Estou mais pesado, ainda vou
tendo cabelo. Não posso cultivar barbas de um mês e despentear-me com
propósito. Tenho saudades de acampar na Fonteireira. Tenho saudades dessas
fogueiras vividas com amigos a descobrir o mundo e saber que estávamos a ganhar
super poderes sócio-espirituais. Esse fogo, essas bicicletas, esses gargalhadas,
essas caminhadas, essa rotina, essa fúria dos momentos de paz, ecoam nestes
tempos mais lentos e saborosos. Esses episódios retinam nestes finais de vinte
anos de combates sem guerras de grande violência.
Continuo a brincar, a mascarar-me a inventar
novas vidas. Faço Teatros. Mora em mim tanta gente fictícia e tanto de vocês
que juntos devemos ter mais de dez mil anos. Continuo a apaixonar-me por coisas
que me são estrangeiras e continuo a querer só dizer-te uma piada, fazer-te rir, para que não me tenhas mais fronteiras. Ainda não sei dizer imenso, por
isso é bué fixe saber que este meu mundo tem tantos espelhos-fantasmas-benignos
de mim mesmo. Ora derivando eles pelas subidas do Monte Abraão, ora desviando-se
pelas arcadas de Pádova, ora fazendo-se
sentir nas gargalhadas de Roterdão, na doçura dos olhar de Liubliana, nas
despedidas das estações de Varsóvia ou
na multidão ensimesmada dos ferries do Corno de Ouro. Sem esses ecos, eu não
teria sexta-feira estes trinta anos. E sem estas palavras ditas eu seria apenas
mais um sem história. Sem palavras escritas hoje, quem serei eu daqui a
quarenta e cinco vírgula quarenta e nove anos? Além de morto segundo o INE e a sua esperança
média, não seria ninguém. Mesmo vivo preciso destas palavras ditas e reescritas... Preciso mais que isso. Preciso que me oiças e leias. Porque não bastam só
as palavras escritas. Mesmo que um dia inventem borrachas com a parte azul que
realmente apague a tinta de todas as bic sem sequer romper as folhas dos nossos cadernos pretos com
recorte dos Nirvana, tu leste-me e sabes quem fui. Mesmo que todos os hackers
malévolos da facção ignorante do mundo se reúna e acabe de vez com os
processadores de texto e as bases de dados de blogues, tu lês-te me e sabes
quem sou. Mesmo que todos os incêndios da piromania estival queimem estas folhas brancas de passado frio,
tu leste-me e podes amanhã contar quem eu poderia ter sido. Mesmo que um dia
não existam mais registos meus, que não conste do ficheiro de qualquer
burocrata ou que os filhos da mãe dos Alzheimers me sodomizem a mente, tu leste-me
e eu posso voltar outra vez a ter 15,apaixonantes, anos. Gonçalo Fontes