…respostas, críticas, crónicas, verdades infundadas, teorias, encontros, paródias, conspirações, chalaças, ramboiadas, lágrimas, venenos, gentes, vícios, valores, palavras, perguntas, solidões, comunhões, fobias, frenias, neopatologias, actualidades, mundialidades, portugalidades. Ou só insignificâncias…
quarta-feira, setembro 23, 2009
rearquitectura
Era uma vez uma cidade sem gentes que fossem gente. Sem promessas de amor às dez pás quatro, sem miras nos miradouros, sem pianadas de jazz em bares já aferrolhados, sem putos a chatearem os pais para lhes comprarem mais uma tartaruga ninja. Nessa cidade, as gentes que não eram gente nem se apercebiam destas ausências. Andavam à deriva e ensimesmadas face à desmaravilha de não terem quase nada para oferecer os outros. O único pormenor que mais deixava vaga, e reparem que nem era a todos, só aos que usavam as perspectivas de quando a quando no zoom in, era o simples facto entristecedor de que esta cidade não tinha (e não havia memória de ter tido) linhas. Não tinha linhas. Nem cantos, nem molduras, nem círculos, nem losangos, nem sinais, nem quadros, nem edifícios, nem estradas, nem pontes. Nem cruzamentos. Simples facto entristecedor não, assunto mais trágico e mais grave que isso: é que nem sequer se via um rabisco clandestino nas mesas novas da É Bê, Dois mais Três.
Claro esteve que, como em todas as cidades sem gente que seja a gente, tinha de chegar alguém para gizar mudanças drástico/heróicas utopicamente criadoras, nos corações dos mais novos incautos, de bem-estar duradouro e assegurado para mais de cinco ou sete gerações vindouras. Mais simples: bastou, ao meio dia menos quinze, aterrar na cidade (a das gentes que não eram como a gente) um rapazola com um lápis amarelo e preto. Um lápizico com poucas afiadelas de vida. Trazia-o na orelha esquerda. Mais do que isso trazia de si um sorriso e uma ou outra ruga por, provavelmente noutros ontens, já ter repetido tal gesto. Além disso e principalmente, não trazia consigo quase nenhuma régua.
Nem foi preciso “aos poucos”. É que foi logo: tudo mudou. Força de peito, alma nos bíceps, a cada risco as gentes foram construindo aquilo a que mais tarde um outro chamou de «música petrificada». Estava arquitectada a nossa cidade de gentes já como gente e como a gente. E a gente esteve seis dias a beber e a comer. A gente esteve seis dias a fazer e a refazer o amor nas inexistentes fronteiras delineadas dos corpos, par a par. A gente esteve seis dias a metralhar preconceitos em tabernas e em varandas para aquelas fontes desenhadas por amor; A gente esteve seis dias a cantar medleys bem desatinados e grandes hinos bem desafinados. A gente esteve seis dias a usurpar-se sem licença da vida feliz uns dos outros. A gente esteve seis dias a libertar, sem artifícios, o fogo tão preso de tantos outros dias sem maravilhas. E ao sétimo dia? Ao sétimo dia a gente obviamente ressacou.
Foi quando, exactamente na esquina traçada dessa ressaca, uma miúda apareceu. Trazia uma borracha e achou (por bem ou por mal, por medo ou por sensatez - a gente não tem conclusões para isto), apagar devagar tudo o que tinha sido arquitectado. Claro esteve que, com tudo apagado, as gentes deixaram de ser gente. Voltaram às rotinas daquilo que mais sabiam fazer ou desfazer. Por exemplo, tentaram ter finais de tarde bem dispostinhos. Tentaram inventar palavrinhas como “saudade” para poderem falar, de mãos apoiadas na mesa do cafézinho, daqueles tempos em que não baixaram os braços. Tentaram ter programinhas de OTL alternativos e sublimar com fotogramas de autores neuróticos, as horas pop descomplexadas e o roque à antiga que as fez feliz nos dias em que havia projectos. Tentaram apagar-se em corpos já com fronteiras. Tentaram viver a vida que deviam viver e continuar a não ter nada para receber e ainda menos para dar. Tentaram ir poupando energia acreditando em ficções não consumadas mas seguras. Tentaram recalcar o próprio desenho a lápis do vento livre mas efémero. Depois de tudo apagado, as coisas foram voltando àquela bonança desalmada de outrora. E a gente? A gente foi-se tornando anónima.
Claro está que, como acontece sempre nestas cidades em que ainda há gente, nem tudo estava apagado. Secretamente precavidos de memória e uma ou outra folha de papel vegetal, algumas gentes conseguiram reservar algumas linhas de esperança. E o rapaz? O rapaz já só tinha um afia, mas ainda tinha o sorriso e as rugas do sorriso e as novas outras rugas dos dias apagados, não fosse o diabo tecê-las. Mais do que isso ainda tinha amigos. Noves fora, bastariam somente alguns dias mais apagados para que a cidade sem Gente voltasse a acender-se e voltasse a ser Cidade.
Bastaria isso ou, como todos sabiam mas ninguém queria profetizar, bastaria que aparecesse alguma miúda que odiasse borrachas e aterrasse na cidade de gente como a gente, por volta da meia-noite menos quinze, com um sorriso luminoso e um lápis. Ou uma lapiseira. Sim, uma lapiseira daquelas cor-de-rosa sabem? Tipo aquelas que as miúdas usavam para reconstruírem os nossos mundos, nas mesas da É Bê Dois mais Três.
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