quinta-feira, abril 12, 2007

Posse Conjugada



Agora vou esquecer o que sou. Quero saber o que tenho:


Tenho as mãos pequenas quando escrevo e quando não escrevo.
Tenho documentos que me provam que tenho altura,
que tenho pátria,
que ainda não tenho mulher
e que vou tendo quem me quis perto de mim.
Tenho vontade de aprender a tocar contra-baixo e depois ter de me esquecer de todos os acordes.
Tenho fome.
Tenho poucas vezes sede.
Tenho macacos no nariz.
Tenho ali coisas que me emprestaram e eu não sei de quem são.
Também tenho a ideia de que não quero morrer já.
Tenho o desejo de um dia ser velho e poder fingir que sou surdo para poder chatear toda a gente.
Tenho o gosto em fugir.

Tive de tomar decisões.
Tive de me despedir.
Tive de cantar para muita gente.
Tive de usar ténis de velcro.
Tive 5 , tive 6, tive 12, tive 16.
Também já tive 20 anos.
Tive crostas nos joelhos que rebentava para ver como era o sangue.
Tive-te a ti e nunca mais tive de te ter.
Tive febres.
Tive ressacas.
Tive muitas vezes de jogar à macaca com a solidão.
Tive de correr.
Tive de vir.

Tinha que só dormir.
Tinha que lavar.
Tinha uma camisola do Benfica com o patrocínio da Shell.
Tinha avôs.
Tinha que decorar a tabuada.
Tinha bichos-da-seda numa caixa de Le Cock Sportif.
Tinha todas as raparigas a gostar de mim.
Tinham amor por mim e mas eu tinha de continuar ali a brincar.

Fui tendo colecções.
Fui tendo paixões.
Fui tendo ilusões.
Fui tendo canções.
Fui tendo que fazer rimar obsessões.

Vou tendo caspa.
Vou tendo pé de pouco atleta.
Vou tendo apontamentos por ler.
Vou tendo relatórios por melhorar.
Vou tendo passe social.
Vou tendo perspectivas de novas memórias.
Vou tendo motivação para reaparecer.

Terei um carro que me leve a Bagdad em paz?
Terei amanhã alguém a dizer-me ao ouvido: “Avô, e quando foste vocalista de uma banda de rock em Itália?!”
Terei que usar óculos?
Terei de morrer demente?
Terei sempre estes dentes?
Terei aproveitado bem a última noite antes do genérico?

Tivesses sido tu.
Tivesse eu comprado um outro bilhete.

Teria hoje muito menos se não vos tivesse tido.
Teria que ouvir mais vezes a minha mãe.
Terias que viajar comigo mais além,
Teria Plutão sobrevivido.

Tivera eu não ter tido de ter perguntado “porquê?”
Tenho de me perguntar sempre porquê.

Tenho MP3. Tenho um Motorola, Tenho Zara. Tenho Pull and Bear. Tenho All Star. Tenho Timberland. Tenho H&M. Tenho DKNY. Tenho Boss. Tenho o cabelo despenteado. Tenho barba por fazer. Tenho olhos verdes salpicados de castanho. Tenho fotos em que estou bonito. Tenho raparigas que me desejam. Tenho perdigotos desfeitos no meu monitor. Tenho borbulhas, Tenho pêlos. Tenho barriga. Tenho vontade de cagar.

Tenho Carta e não conduzo. Tenho Cartão de Eleitor e voto mal. Tenho Cartão de sócio do Benfica e empato com o Beira-Mar.

Tenho uma Promessa, tenho uma Lei e tenho Princípios. Tenho cicatrizes. Tenho Palavra. Temos Movimento.

Tenho mochilas, tenho fechos e tenho gavetas. Tenho linhas e tenho contas. Tinha-te em linha de conta. Tenho Cartão de Crédito e tenho zeros. Tenho papéis. Muitos papéis. Tenho infinitos papéis. Tenho de ir ali rasgar poemas como se tivesse de rasgar mulheres. Tenho de gozar, tenho de possuir o mundo. Tenho de desfrutar. Tenho de te encontrar e tenho de te apanhar. Tenho raiva. Tenho calma. Tenho ¾ de alma.

Tenho tudo aquilo que a circunstancia ainda não me permitiu não ter.
Não tenho nada daquilo em que eu próprio não consegui permanecer.
Tenho dias em que tenho pouco pé mas tenho noites em que tenho o leme.
Tenho a sorte de poder escrever. Tenho este mar. Tenho esta terra. Tenho esta gente. Tenho companheiros. Tenho perdido e tenho vencido. Tenho que viver.


Tenho a ideia de que tenho o que tinha de ter. G.F.

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