sábado, abril 15, 2006

Sobre a Páscoa, sobre o mundo e sobre mim, entretanto desactualizaram-se alguns factos, outros nomes tornaram-se passado. Contudo a opinião é a mesma e por não ter mais nada para dizer nestes dias, ou tendo mas não achando razão para, deixo aqui um post com duas Páscoas de vida.


Domingo de Aleluia em directo da TVI. Morte e Ressurreição de Cristo, velas a 0,5 euros. O raio do estúpido coelho e a sua distribuição de ovos. Operação Páscoa: 4 mortos nas estradas. Kinder supresa, esta semana no sítio do costume.

A actual Páscoa é – me ridícula. Um pretexto para as marcas de chocolate, amêndoas e os T2 de Albufeira facturem aquilo que não poderão noutras alturas. Uma festa da Igreja que tantos desejam uns aos outros de “feliz”. Mas o que é uma Páscoa feliz? Porque não nos limitamos a dizer boas férias, boa praia, boa viagem? Uns agnósticos, outros apáticos, vamo-nos ressuscitando sim, mas sempre na fuga para a frente, de tanga, trabalhando o bronzeado artificial e rápido, fingindo que somos tropicais invadindo praias, disfarçando-nos de adinheirados em pistas de ski sintéticas. Serve a Páscoa de pretexto para muitos verem as famílias que esquecem durante todo o ano. Para falar das vidas de cada um que tornarão a repetir em estórias no próximo Natal.

Mas há quem se lembre de Jesus. Há quem se lembre do dele e dos seus calvários: um rol de 3 ou 4 Cristos por canal de televisão, sempre de barba bem tratada e olhos claros, trata de fazer esse serviço de memorização. Os que se dizem praticantes mas muitos já sem fé, esses, multiplicam-se pelas procissões cadenciadas ao ritmo obsoleto da tradição, do rito. Repetem-se evangelhos, palavras sagradas. Os coros de velhas cantam estridentemente Aleluia! Aleluia!. «Amarmo-nos uns aos outros como eles nos amou». Como os radicais xiitas amam os sunitas, como Yasser ama Sharon, como Bush ama o Protocolo de Kioto e o desarmamento nuclear americano, como o Bloco de Esquerda ama o Portas, o Partido Comunista a liberdade de expressão, como o Le Pen ama os magrebinos, como a Britney Spears ama a virgindade.

Esta metade, a cínica, vai fazendo as manchetes. Porque a outra metade de gente que ainda aqui vivemos felizes não fazemos notícia. A condição voyeur humana, a masturbação da dor vizinha, o esgravatar o sofrimento dos pares, o hipnotismo pelas fustigações alheias, o deslumbre pela decadência do próximo, qual ritual neodarwiano psicológico de sobrevivência, esses sim fazem as parangonas, headlines, punchlines, highlits e exclusives do nosso bombardeamento informativo quotidiano. A outra metade que apenas se propõe a hiperbolizar a boa acção entre os povos não é falada. Porque dizem os novos sábios que o Homem é naturalmente mau e condenado ao fracasso, que a competição é vantajosa em relação à cooperação. E esta vai sendo cada vez menos noticia. E nós vamos sendo cada vez menos notícia e cada vez menos. Porque somos utópicos e pouco rentáveis. Porque ajudar sem esperar recompensa não nos dá cartões gold. E assim alguns de nós vamos existindo, acreditando mais no Homem, não em Deus pois acho que o seu único e sólido argumento é o de não existir. Ou mesmo acreditando Nele, e já que o inventámos à medida das explicações de quem somos e dos sonhos de quem seremos, pedimos que Ele acredite na nossa redenção, no «escapar da escravidão mental». Usando-o na tentativa de esquecer que estamos abandonados, entregues à procura de algo ou alguém que nos faça sentir pertença. Mesmo sabendo que a Humanidade acaba por tragar aqueles que mais a tentam perceber e amar, vamos existindo assim nesse enigma ao mesmo tempo agonizante e reconfortante: Teremos um dia a Paz , a Liberdade global dos Povos? Se realmente podemos mudar-nos e mudar os outros, só através da acção, através da Arte, da produção de Cultura, do Criar, do poder da reificação humana que nos é inerente, é que realmente poderemos descobrir, no fim, que foi ou não possível construir essa mudança. Voltaire, Ghandi, Luther King entre milhares de nomes famosos e anónimos acreditaram. Jesus acreditou em nós. Morreu por uma causa. Talvez nós possamos, mas também temos de acreditar. Falta-nos, mais que a fé, a vontade de combater a inércia de descobrir que podemos vencer, podemos de facto mudar. Eu hoje poderia ter ganho o totoloto. Sonhei com o que faria com 1 milhão e 400 mil contos, troquei listas de compras imaginárias com uma pessoa que cepticamente me dizia que é mesmo muito remotamente provável acertar o 6. Mas a verdade é que nem eu nem ela alguma vez preenchemos um boletim. G.F.

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