quarta-feira, abril 19, 2006

homens, tangos e fados



«Te mato cabron se dices a alguien». Eu além de o dizer a alguém, escrevo-o aqui. Para que, na possibilidade remota de me esquecer desse momento, possa um dia ler isto e relembrar-me. Ele também não me iria matar por tão pouco. Chamar-me umas quantas vezes cabron, sim.

Aconteceu quando já vivia naquela Via Aosta há quase 5 meses. Vivia com mais dois rapazes que conheci no dia em que fui ver a primeira casa que encontrei livre., Lawrence, belga e Miguel, argentino. Quando se tem vinte e dois anos e se parte para um país diferente para se fazer “Erasmus” é como se estivéssemos a desancorar para uma guerra. Só que não vamos ter que matar ninguém, não temos quaisquer ordens de generais. Somos almirantes de um combate pessoal pelo ser forçado a crescer com outros. Outros que não falam a nossa língua, que não sabem quem sempre fomos nós. Não temos de cavar trincheiras mas estreitamos sim o fosso fronteiriço entre as diferentes nacionalidades. Não temos marmitas mas sim cantinas melhores que as do quartel-general. Não precisamos de putas porque surgem sempre algumas em cada pista prontas a não querer cobrar nada. Não vencemos pela pátria, porque a pátria tem vários heterónimos boémios ou utópicos. Não temos jipes, nem tanques. Temos bicicletas guiadas sem mãos. Olhos no céu, garrafas de vinho felizes e meio cheias. Não temos rufares autómatos nem trompetas anunciantes: cantamos sem medos. Não somos soldados, somos Homens. Partir assim, solitário, com armas de paz na mochila e fazer verdadeiros amigos que sabemos que passado um ano não partilharão a mesma oportunidade de permanecer nessa guerra fez-me saborear esperança em processo de inversão lenta. Tive saudades do futuro. Melhor, vi-me de volta a Lisboa já sem os meus companheiros de combate, apenas podendo trocar poucas linhas virtuais que tanto de vida deixam fugir ou a encontrarmo-nos casualmente, quais veteranos relembrando o que se foi, por lá longe, vivendo.

Julgo que entre homens se vive melhor que entre mulheres. Acho mesmo difícil que a palavra camarada, ou antes, a camaradagem se aplique entre mulheres. Porque entre mulheres partilha-se tudo, principalmente sentimentos. Que valor têm os sentimentos, se estão sempre a ser reciclados depois do uso, através de conversas milésimamente repetidas? Acho que dois homens que partilham esperanças, sonhos, lavagens de loiça, roubos de bicicleta, rodabotaforas, varreres infindáveis de cozinha, desilusões, arranjos de máquinas de lavar, estórias de mulheres passadas, ida às compras, só pelo facto de o fazerem e de não serem gays, só pelo facto de o fazerem compactuam muito mais entre si No final há uma amizade muito maior que entre duas raparigas que façam exactamente o mesmo, (alguma mulher que me prove aqui o contrário, ficaria feliz). Porque vivemos constantemente calados sobre o que sentimos, nas poucas horas em que abrimos a alma a outros tipos de barba por fazer como nós, conhecemos o que é a fraternidade. E porque fomos educados assim, a ser duros, quando fraquejamos percebemos o que é humanidade. Quando nos abraçamos em silêncio e damos pancadas acompanhadas de caralhadas, compreendemo-nos. Quando choramos, sabemos que não somos os únicos, nem poucos, nem fracos. Vemo-nos homens.

Aconteceu quando já vivia há quase 5 meses naquela Via Aosta. O Miguel, argentino, pegou na minha edição do «Escutismo para Rapazes» e começou a ler. Eu nunca tinha aberto o livro desde que chegara. Comecei a gozar com a sua pronúncia e a forma como lia o português. Depois falei-lhe do escutismo. Não do que era mas a forma como eu o vivia. E então lembrei-me de todas as outras guerras por mim vividas em adolescente, os amigos em Portugal, as noites de guitarras dedilhadas pela fogueira, lembrei-me depois dos meus pais, da minha irmã, das minhas raízes. Foi quando eu já embaciara os olhos que ele começou a ler “a última mensagem de BP”, num português muito mau mas bonito. Comecei a chorar, senti que também ele ou eu seríamos como o chefe dos piratas e nos estaríamos um dia a despedir. Ao mesmo tempo ele ria-se e chamava-me «portoghês páneleiro, cága pa dentro, bambino du caralho, puto maricon». Ri-me e olhei-o nos olhos e vi que também estava emocionado com o que estava escrito. Então parámos a lamechice e fomos beber duas cervejas. Há muito tempo que ele não voltava a Buenos Aires. Estava num continente distante, numa cultura diferente. Queria navegar e ter uma barca para conhecer o mundo «como os portugueses fizeram.» Nesse dia depois de almoço entrou no meu quarto antes de eu sair para comprar um cartão de telefone. Eu estava a ouvir Gotan Project e ele perguntou-me se sabia o que era uma milonga. Falámos de tango, das ruas de Buenos Aires e eu deixei-lhe o c.d. há muito que não sentia aqueles sons. Quando regressei, depois de meia hora, a porta do meu quarto estava semi aberta. Ele estava de olhos fechados, corpo de mulher invisível no ar, ensaiando com ela uns passos de tango. Antes que me gritasse «Te mato cabron se dices a alguien!» vi que dançando chorava. Percebi o quanto mais saudade era o seu Tango que o meu Fado. G.F.

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