Acordas desembalado pela polifonidade finlandesa e sentes que o mundo ai está para mais uma jornada de hábitos. Gostas de costumes porque sabes que existem tardes que os fazem esquecer, existem noites sem rotinas e outras manhãs com trago a verões de futeboladas despreocupadas na praia. Acordas, mas sucumbes ao dormir respeitando a mãe dos vícios que é preguiça. Então começas a viagem de comboio inconsciente, sentado lá atrás, na última carruagem a inspirar futuro olhando um passado que te vai acenando na despedida. Sentes o vento, fechas os olhos e adormeces convencido que quinze minutos bastarão para não teres mais sono. Atravessas campos em que gemem restolhos, paras em cidades de mulheres bonitas, que se querem amar contigo e deixar-te no dia seguinte para te dar a oportunidade de puderes conhecer outras. Como em cada episódio do Macgyver. E também tens o teu canivete. Levas mais que isso na tua mochila. Sandes feitas pela mãe de véspera. Talvez de ovo mexido mas não te lembras porque das coisas mais difíceis de nos lembrarmos é do que uma mãe nos diz acerca da necessidade de usar determinada peça em função temperatura exterior ou de comida. Naquele bolso de cima já com o fecho estragado levas uma máquina fotográfica que nunca vais usar e te vais arrepender disso quando a viagem acabar. Vais tirar sete fotos, em que cinco são de paisagens belas mas desenquadradas, uma tua com cara de parvo e outra de uma natureza morta no meio de uma praça que, por segundos e só naquela praça e só na tua cabeça, te parecia um momento de arte. Levas água numa garrafa de Evian. Essa água é da torneira e como é de Lisboa até é das águas da companhia melhores da Europa. Pelo menos sempre o ouviste dizer. Não tens nada a esconder e viajas lá atrás, a expirar passado, imaginando atrás de ti a surpresa da próxima paragem. Tocas guitarra e harmónica quando está sol. À noite, depois das despedidas, saxofone. Umas vezes choras com as coisas que se dizem bonitas entre dois beijos, noutras ris-te de coisas ridículas como a sonoridade da frase “lambe-me a glande”. Às vezes lembras-te de escrever qualquer coisa no Moleskine que compraste há um ano e apercebeste da arrogância intelectual em forma de post- its próprios de frigoríficos suburbanos. O mundo é-te portátil e fazes o que quiseres com ele. Tu agora és a barra do arkanoide mas teimas em fazer game-over porque nunca te mexes. Ès a bola na trave e no poste, quase aquilo que poderia ter sido o golo do ano. E no mesmo instante uma nota de 100 euros voa na tua direcção e tu guarda-la na mochila. Vais querer poupa-la. Mas depois, na próxima paragem vais gastar em imperiais, calças que só vais vestir duas vezes porque te esqueceste de pôr a lavar a tempo as outras, idas aqui e ali em datas que não farão parte de calendários revistos amanhã, livros aconselhados que vais ler na diagonal porque na televisão não estava a dar mesmo nada de jeito. Paras em aldeias desconhecidas. Tornas-te líder político e fazes a revolução. Iças bandeiras, fazes amor com mulheres de esquerda, comemoras com bom vinho e fodes mulheres de direita. Tornas-te símbolo sexual, e todos querem um pouco de ti. Decides fugir porque sabes que só queremos permanecer num lugar onde os espelhos nos amem rugas. Continuas sentado lá atrás, a linha recta, as casas que fogem de ti como bólides. Se fechares bem os olhos aquela é a tua Caravela mas o Homem do Leme não és tu. Gostas de estar lá atrás, porque há um vento que te foge e lá mesmo na frente já deve estar o outro a gritar megalómano que é o rei do mundo. Abres a mochila e sacas de uma máscara grega. Não sabes se fazer uma tragédia ou uma comédia com a vida e oferece-la ao revisor que entretanto chega e se senta ao pé de ti, cansado de trabalhar. Abre uma garrafa de Vodka, e depois de metade confessa-te que gostava de ter sido guarda-redes, mas depois veio a comissão na Guiné. Reparas que ele não tem uma mão e lembras-te daquele episódio do Tsubasa em que o guarda redes defendeu um penaltie de costas para a bola porque uma das mãos estava engessada. Riem-se os dois e ele leva a máscara posta ao mesmo tempo que trauteia La Traviata de Verdi. O comboio pára mais uma vez e então crianças enchem todas as carruagens. Vais ter com elas e contas-lhe a pior anedota de sempre e eles depois querem que a conte vezes sem conta com diferentes pronúncias. Dizes que já foste à Lua três vezes e meia porque numa o foguetão teve um furo e não havia macaco. Que dentro do teu armário vive um dinossauro chamado Jeremias. Eles pensam que és louco mas não pensam que és mentiroso e isso deixa-te feliz. Dão-te carteiras de cromos da panini com o perfume do descolar que em milésimos de segundos te transporta à tua infância. Agora são teus amigos para sempre. Ao mesmo tempo pensas se terás tempo na vida para fazer qualquer tipo de colecções. Descansas a cabeça nas mãos e sentes a barba que nunca quiseste ter. Lembraste daquela manhã em que ela a te desfez suavemente entre carícias. A mochila então já não te pesa. Lá dentro ainda tens alguns aleluias, uma bússula, duas fisgas, manuais de tolerância, uma cafeiteira, um poema de Ricardo Reis, corta-unhas, panfletos do professor caramba, um contra-baixo desmontável, imagens mentais da Scarlet Johansen para as madrugadas de solidão, fotos desfocadas de amores finitos, um baralho de cartas onde falta o às de copas, uma agenda de números de telémovel para quem nunca ligaste, canetas bic quase gastas, guardanapos de café sujos de creme das bolas-de-berlim de ontem e, entre muitas outras coisas estapafúrdias ou úteis ou essenciais, também vislumbras alguns tipos diferentes de esperança. Fora da mochila tens lama e o cheiro da terra molhada. Decides tirar uma bússola que não funciona e decides que talvez estejas a ir para Sul. Pelo menos está calor. Vês camelos. Estão engravatados e viajam para um meeting de outsourcing em primeira classe. Antes de parar mais uma vez, saltas ao passar numa duna. Cais, rebolas durante vinte minutos ao mesmo tempo que te consegues lembrar que as dunas não são divãs nem biombos. Chegas ao Fim do Mundo, diz a placa. Tudo ali está prestes para acabar. Aos presentes ainda lhes falta o laço. Nas pastelarias ao bolo ainda falta a cereja. Aos que estão atrasados para o emprego ainda falta calçarem-se e ver no espelho se estão menos feios do que o que são antes de saírem. Aos poetas falta-lhes o último verso. Aquela rapariga tímida que já escreveu o mail para o rapaz que não sabe da sua existência ainda lhe falta o clicar no enviar. À outra, menos tímida, falta-lhe vir-se. Custa-te estar ali e mais uma vez te escapas, tentando encontrar terras sem fechaduras onde ninguém tomasse à letra o que pensasses e o caos fosse arrumado com base sólidas em amores eternos. O comboio esperava por ti porque também não tinha mais passageiros. Sentas-te no mesmo sítio, lá atrás, suspirando pelo presente, rindo com o passado, sorrindo com o futuro. Resolves escrever a marcador um poema com três versos, no chão da carruagem. Um poema que será pisado e pouco lido. Vês, ao longe gentes, que por estarem pouco perto estão pequenas. Parecem anões e divertes-te a pensar naqueles outros sete e no quanto estariam ébrios ou drogados os seus pais quando lhes decidiram dar o nome. Saber que vamos ter 7 filhos e anões não deve ser nada fácil. Soltas uma gargalhada tímida que se fosse acompanhada teria sabido melhor. Compreendes então por instantes todos os vícios do mundo. Mais os dos outros que os teus. Olhas para cada paragem e não está lá ninguém. Poderão estar à tua espera na paragem do autocarro. «Ás vezes as pessoas enganam-se». Assim, chegas àquela estação enorme e começa a entrar uma multidão que vem acercar-te. O primeiro é Deus. Deita-se de costas e adormece sem teres a oportunidade de lhe perguntar o que quer que seja. Entra também um tipo chamado Adolfo abraçado a um italiano careca que depois começam a discutir sobre que lugar a ocupar. Entre alguns tipos que te parecem familiares e uma selecção de voleyball brasileira que não tira os olhos de ti, vês a tua avó que te afaga as bochechas e te diz meu rico menino. Trouxe-te rabanadas que não comias há mais de dez anos. Depois chegam poetas famosos, trazem telas, pincéis e pintam-te o que tinhas acabado de pensar. Chegam pintores consagrados e começam a escrever canções que gostavas de cantar. O comboio viaja cada vez mais rápido e tudo é uma espécie de carrossel parisiense mas sem a base da Torre Eiffel a aparecer de dez em 10 segundos. È um carrossel pelo universo. Tu vais lá atrás a cantar, as brasileiras a fazer strip, Deus sem acordar, a tua avó a fazer croquetes para todos, os putos mais preocupados em imaginar que estão a chegar à lua, as caras familiares completamente embriagadas e tu a olhar para trás a pensar nas pessoas que já fizeram parte intima da tua viagem e que por algum motivo tiverem de se apear. Essas gentes que dividiram pouco espaço e multiplicaram entregas, acenam-te com nostálgica distância. Essas gentes que são algo de ti e onde também deixaste malas de ti mesmo. Gentes sem teu presente mas jamais ausentes surgem em cada curva ferroviária.
E tu decides ir para a locomotiva. Lá, final de tarde de primavera, televisão ligada na final da champions league em que joga o teu clube, cotovelo esquerdo na janela enquanto comes aquele gelado de Bolonha, sorriso à Tom Sawyer, mente no horizonte e mão direita que faz desencadear um lento e sonoro apitar que se tranforma no teu despertador para o embalo quotidiano. Descobres que foi um sonho, mas o sorriso já ninguém te tira. G.F.
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