Não percebo quem não entende a importância histórica, afectiva, social, psicológica, económica, que este campeonato da Europa teve para o nosso país. Mais que o nosso país, o Euro conseguiu unir a nossa maior pátria, a da Língua Portuguesa. Não percebo quem não entende o fenómeno desportivo como o único factor capaz de promover a paz entre os povos, como disse Mandela. Quando gosto de falar do futebol, não falo dos senhores das secretárias mas dos magos da bola que, heróis, fazem do seu talento a arte nos relvados da ribalta. Não falo da máquina publicitária mas de quem se senta à frente da tv, de cachecol ao peito, numa rua em construção em Dili ou num café apinhado em Benguela, chorando a cada vitória. Falo das cuecas, das cabritas, dos postes feitos de “monte campos”, do «querem fazer jogo?», das equipas de fora, dos apurados, da rabia, do «muda aos 5 acaba aos 10», do par ou impar para fazer equipas.
Não percebo quem não se emociona ao ver uma finta do Cristiano Ronaldo, ao ver uma defesa sem luvas do Ricardo. Não percebo quem ache que discutir bola é uma futilidade, que não há nada de sublime em ver “22 homens a correr atrás de uma bola”.Não percebo quem ache que emocionar-se por um jogo é coisa de gente pequena. Também não é para esses “grandes” que mostro os momentos em que me embasbaco com o mundo.
Este Euro, o melhor de sempre, deu-me a oportunidade única de viver na prática que é possível existir amor entre as vários tribos humanas. Hoje que abano a cabeça e mordo de raiva os lábios ao ver as imagens da festa que se fez na Grécia, sei que acordei de um sonho. Mas mesmo esse acordar foi de festa, não foi um acordar para um regresso ao negro fado brutal. A derrota de domingo foi triste mas o que aconteceu antes e depois quase que consegue dissipar a frustração de neste momento saber a cruel verdade: não somos campeões.
O domingo da nossa e da minha derrota, um domingo que podia ter sido o da explosão nacional, começou com as pinturas de guerra, o vestir das fardas oficiais para a última batalha. Multidão de gente confiante, colorida, cantando, despida, envergando pátrias de sorrisos. Um jogo que começou a revelar-se sufocante. Um golo que não se viu quando se pedia uma imperial. Um golo que foi o primeiro beliscar. A dor de cabeça por puxar pela equipa até ao fim. E o apito final. Um apito silencioso. Um país resignado. Desiludido. Fui à janela do bar e olhei para a multidão que olhava os vários ecrãs gigantes. Lembrei-me do meu pai que chorou quando o Benfica perdeu a final para o P.S.V. Lembrei-me do meu pai que me acordou numa madrugada para ir ver o Carlos Lopes ou a Rosa Mota ganhar a maratona. Lembrei-me dos milhares de portugueses que neste momento estão a viver uma vida sócio-económica de merda e tanta vontade de mudar e de ganhar projectaram nesta selecção. Lembrei-me do inglês que se abraçou a mim a chorar no final dos quartos de final. Lembrei-me dos meus putos lobitos para quem ainda perder não é muito significativo mas custa. Lembrei-me daqueles dias de Setembro de 99 em que andei nas manifestações pela libertação de Timor, em que de tão longe nos tinham tanta gratidão e carinho, em que dias antes desta final nos comoveram ao beijarem as nossas bandeiras do outro lado do planeta. Lembrei-me que a vida não é o argumento que escrevemos, que os bolos quase nunca têm cerejas. Que também acordamos. Depois chorei.
Mas desta vez tivemos orgulho, saímos para a rua novamente de vermelho e verde. Antes de chegar ao Marquês entristeci-me com a nossa cidade, o nosso mundo que tinha planeado tanto a festa e que agora estava ali na rua gritando pelo país. Num sinal vermelho apaixonei-me por umas raparigas que pararam o carro ao pé do nosso apitaram. Quando virei a cara para ver quem era, disseram para não ficar triste, que não valia a pena, que devia estar feliz e orgulhoso porque tinha uma cara bonita e porque era português. Sincero ou não, nunca um elogio de um estranho me soubera tão bem. Agradeci e sorri. Perguntaram-me o nome, arrancaram e nunca mais as vi. Ainda por cima eram bonitas.
No Marquês, a festa com os estranhos que iam aparecendo e falando connosco. A bandeira gigante comovente que alguém ergueu. Depois, na Avenida da Liberdade, os gregos que nos iam abraçando e agradecendo pelo país, pela hospitalidade, respondendo com “bravô” quando lhes gritávamos “sihcaritiria”. Tempo para avisar um grego que havia sítios mais baratos que a “Brasileira” e que o nosso Fernando Pessoa foi mais genial que o seu Homero. Então, um Bairro Alto de gentes boémias, cantando Portugal. Brasileiros levantando o nosso astral fazendo rimas, uma guitarra já rouca a cantar Zeca Afonso, canadianos de descendência indiana, que nunca tinham estado num país de “arquitectura, de comida e de gentes tão fascinante”. Mais tarde acabar a noite sentado no chão a beber e a falar de tudo e de nada. Rindo nas ruas, com amigos. Até que um grupo de Japoneses (um com uma camisola do Benfica!!!) chega e lhes começo a gritar pelo Tsubasa. Vêm a correr para mim e começamos a cantar a música desses míticos desenhos animados que demoravam 10 episódios para se marcar um golo. Tempo para discutir o papel do Hentai e da ejaculação facial inventada em terras nipónicas, para agradecer pela invenção do Nintendo (a minha maior alegria quando passei para o quinto ano). E depois um momento que nunca esquecerei, o de quando mencionei o Sangoku e quando tive a oportunidade única de fazer a “Fuuuu zããããoo” com um deles, que fingia transformar-se em Super Guerreiro. Abraçaram-se a mim dizendo que eu era um “ámigo, ámigo” e despedimo-nos gritando por esse astro mundial, Tsubasa, também conhecido por Oliver Benji.
A noite acabou e se tivéssemos um Tsubasa na nossa selecção nem tinha acabado. Bem vendo as coisas o Euro foi como esses desenhos animados: jogos de qualificação em que guarda-redes tiram as luvas para defender penalties decisivos, pontapés canhão de fora de área transformados em golos de jogadores suplentes, treinadores generais paternais incentivadores da audácia e da vontade de ganhar, público que até anda de bote e de corsel para acompanhar a sua equipa. Perder no final contra os maus que não jogam nada e fazem anti jogo e marcam um golo contra a corrente do jogo. O que vale é que há sempre mais episódios. O próximo chama-se Atenas.
Agora que os jornais de ontem são o lixo de hoje, em que o país está atirado aos lobisomens de bons modos urgentes em caçar o poder, em que se limpam as praças, se desmontam as festividades, se apanham as canas, posso dizer, ainda com alguma incredulidade, que a taça não é mesmo nossa. Porém, o mundo é. G.F.
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