quarta-feira, março 31, 2004

desterro

Quando nos começamos a adoptar a alguma coisa, a estacar identidades, a construir um lar de valores e de afinidades, as coisas mudam. Mudam as estações. Mudam as temperaturas. Mudam as vontades. Para mim a mudança, em especial também a do clima, é sempre acompanhada de uma melancolia que nunca soube diagnosticar a causa. Porque talvez viva como se estivesse numa tenda. Nunca entre betão armado. Os alicerces só os uso quando acredito mesmo a sério nas construções.

Provavelmente não é a mudança do que me rodeia mas a mudança constante em mim que me traz essa melancolia. Uns poderão dizer que é uma doença bipolar bem resolvida ou benigna. Outros simplesmente «que há gente assim». Os acontecimentos passados e próximos têm-me feito pensar na precariedade de tudo o que existe. Na ligação vital que tenho com os outros e comigo. Não me sinto deprimido. Sinto-me triste como sempre fui desde que descobri que podemos morrer. E mais tarde, desde que descobri que podemos mesmo Viver.

Fui descobrindo esse paradoxo. Talvez quando em puto montava, com os colchões tripartidos do campismo, uma espécie de caravana e punha lá dentro os meus melhores brinquedos, pegava num livro de viagens e via a Torre Eiffel, os chineses, o deserto. Esquecia-me que tinha pais. Queria partir. Viajar simplesmente, açambarcando-me de todos os outros, de todos os mundos. Já então a independência e a liberdade de ser quem e com quem quisesse. Renegar as raízes para as perceber. Desprender-me.

Mas viver desprendido de tudo mas amando a vida no seu esplendor mágico é contraditoriamente angustiante. Uma angústia espelhada em lágrimas que por vezes caiem nos momentos em que me sinto eternamente feliz. Lágrimas salgadas como as outras, que embora diferentes, não deixam de ser lágrimas. È essa contradição quase esquizoide, ou profecia plenamente auto confirmada pelo meu signo, Gémeos, que promove a minha desadaptação e a de muitos a estas vidas que vamos vivendo. Porque é injusto nascermos e termos a capacidade de amar e sabermos que podemos e nos podem morrer. É a mais cruel das injustiças, sabermos a verdade. Ou nos esquecemos disso, como a maioria o faz, alienando-se do sofrimento de pensar a vida tal como ela cruamente nos vestiu, ou adormecemos nisso e comungamos no sofrimento, cultivamos o desespero, revestimos de preto as nossas retinas cognitivas, emocionais. Eu não me revejo nem um nem noutro caso. Se calhar sinto-me como muita gente se sente, um estrangeiro na sua própria terra mas amando as diferentes pátrias e mátrias que a sorte me fez adoptar. Sinto-me como nos sentimos muitos de nós: estrangeiros. O nosso local natal nunca é este. Ao mesmo tempo poderíamos de ser de qualquer local, em qualquer época. Arrogantemente imortais, humildemente humanos por o sonharmos. O nosso local não tem coordenadas, fusos horários, curvas de nível, pontos de referência. Os compassos não o traçam, os caminhos não se cruzam nele. Somos estrangeiros nativos de um lugar que não carece de passado nem padece de futuro. Somos furagidos de uma vida que talvez nos sepulte mais que a própria morte. Com os seus infortúnios, os seus lindíssimos momentos, as separações, os seus ritmos cardíacos com e sem significado.

Apesar de imensamente felizes acho que muitos de nós, sofremos, ora no êxtase, ora na merda, por sabermos que existe uma morte que nos enterra e algumas ou uma vida que nos desterra. G.F.

Sem comentários: