Soube Sexta-Feira passada. Toda a área do Vale Escuro, todo o eucaliptal da Fonteireira desaparecerá para dar lugar a mais um empreendimento do Belas Club de Campo.
Em breve o local onde vivi alguns dos melhores momentos da minha vida desaparecerá. Será um passado quente sepultado sob o presente frio de um parque de estacionamento ou de mais um aglomerado de condomínios privados. Em breve, muito em breve, a Fonteireira será apenas saudade.
Se alguma vez tiver coragem de lá ir e olhar cruamente o progresso talvez chore. Talvez me perca em nostalgia. Talvez reclame pelas labaredas que aprendi a amar, talvez grite de dor abafada para que voltem os sons que me fizeram crescer tão saudável. Os cânticos, o serrar, os entalhes, as ordens, as gargalhadas, o ressonar.
Não sei se conseguirei mais alguma vez visitar o sítio onde se enterrará uma parte de mim, da minha vida e da dos amigos, irmãos, que tive a sorte de conhecer. Não sei se aguentarei a raiva de não poder voltar a descer o Vale Escuro para ir lavar a loiça ao rio. Não sei se perdoarei algumas vezes os homens que em troca de rentabilização e lucros, acabarão por cortar as 3 árvores plantadas com ternura pelos mais pequenos. No alcatrão ou nas paredes luxuosas de algum apartamento verei espelhado, talvez, o dia em que fui investido caminheiro; a noite em que me apontaram uma pistola à cabeça e tive de percorrer o rio vestido com água até ao pescoço; a tarde em que aprendi a fazer um tripé, a madrugada em que acordei sem saber se podia ir fazer chichi, o crepúsculo adornado dos paladares gastronómicos. A bandeira do Agrupamento içada, bailando no mastro em cruz, emoldurada pelos nobres eucaliptos. As praxes, as partidas, os rituais, os baptismos, as calinadas, o caminhar com as mochilas de chumbo, a chegada a campo, o voltar deste tresandando a fumo, as varas mal medidas de eucalipto, os jerricans. A lama, a suja lama. O sangue solto por um machado mal usado. As cicatrizes que trago no corpo, prova na pele de vida que morrerão comigo. Os lenços debruados a branco mas do salgado suor de um dia de trabalho. Os calos que sempre ferirão menos que as máquinas que iniciaram o maldito avançar das coisas. Porque, dizem os homens, tudo tem que avançar. Porque as coisas têm de ter um progresso. As coisas têm de mudar. Sim, eles falam-nos de mudança. Gostava de trocar as voltas a este mudar, como disse o grande poeta. Porém, o dia já não é criança. Envelheceu. De repente, como muitos de nós envelhecemos quando nos ditam o fim. Só que a Natureza não tem fim, não se perde como muitos homens, transforma-se. E nessa revolução biológica a Natureza veste-se de imortal aos olhos de pais e filhos. Assim foi a mata da Fonteireira para os Pinto Bastos, assim poderia ter sido para os meus netos. Simplesmente o verde pintado de liberdade. A liberdade desatada de nós tão sempre urbanos.
Agora, onde adolescente aprendi que não se cortava uma árvore que não estivesse juntamente com mais outras três, avança-se na destruição de 30 de cada vez. E quanto mais avançam mais retrocedo numa viagem polvilhada de caleidoscópios de bons e maus momentos. Instantes que me e que nos fizeram crescer como Homens e Mulheres. Porque perante a plenitude do milagre que é a vida em campo percebemos que somos pequenos e sem querer querendo, crescemos. Neste momento a maquinaria rouba-me um lar onde adormeci mais de cem noites. Ladrões cobardes que nunca saberão o quão pouco dormimos e tanto sonhámos! Capatazes a mando que, em busca de dividendos, asfixiam os passados daqueles que agora novos poderiam passar por outras, as mesmas estórias. Salteadores da verdadeira forma de viver o escutismo, em campo.
E enquanto não acabarem com a última nobreza de uma árvore, a de morrer de pé. Enquanto a desolação não se tornar no último acampamento na Fonteireira, só posso dizer, cantando a música que ela também me ensinou: «Mesmo longe, estarás perto. Ao pé de mim». G.F.
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